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População em situação de rua não teme o vírus: invisibilidade mata mais.

Atualizado: 18 de abr. de 2021

Em um ano de pandemia, apenas 16 casos foram confirmados em pessoas em situação de rua atendidas pelo Centro Pop e Consultório na Rua. A política pública para abrigo durou apenas três meses, em 2020.

Por Ingra Tadaiesky

Homem deitado em uma rede com uma bolsa embaixo.
Foto: Ingra Tadaiesky

Não há espaço para o medo do invisível quando a realidade é muito mais palpável e ameaçadora. Para a parcela da população que vive nas ruas de Macapá, o Covid-19 é apenas mais um de seus muitos problemas. Para eles, o risco de morte e a falta de assistência à saúde é rotina diária, há décadas.

A pandemia do Novo Coronavírus acentuou diferenças sociais, transformando-as em um abismo sem fundo. É visível o aumento do número de pessoas que estão pelas ruas, esmolando nos sinais de trânsito, nas portas de bancos e supermercados ou batendo às portas das casas.

Pessoas em situação de rua sofreram - e sofrem - com singularidades intrínsecas à sua realidade. Primeiro, é preciso explicar o que significa estar em “situação de rua”. A pessoa não necessariamente reside somente nas ruas, mas possui sua socialização nelas; ela pode ter um lar fixo, mas que por diversos fatores está fora dele. No entanto, no estado do Amapá, as pessoas em situação de rua, majoritariamente, têm como única alternativa as vias públicas.


Homem dormindo na frente do Banco do Brasil
Pessoas em vulnerabilidade social dormindo nas ruas. Foto: Ingra Tadaiesky

O Centro Pop é um local de referência no serviço público municipal de assistência social às pessoas em situação de rua. Lá, são oferecidas as refeições e também um local para a higienização, além de uma equipe com psicólogo, sociólogo e assistente social. Atualmente, é o único local voltado exclusivamente para essa população. “O Centro Pop visa dar apoio e acolhimento para a população em situação de rua e durante a pandemia nós focamos nas necessidades básicas como alimentação e higiene”, conta Rafaela Coutinho, psicóloga que atua no Centro Pop.

Com a pandemia, os serviços do Centro Pop intensificaram sua importância para essas pessoas. Quando as medidas de prevenção ao contágio do Covid-19 resumem-se à higiene, ao distanciamento social e à campanha #FiqueEmCasa, não é difícil imaginar as dificuldades que passa uma população que vive sem renda e sem residência fixa. No entanto, a pandemia não é seu principal inimigo.

João Amanajás é coordenador do Centro e conta que a sociedade não se interessa por essas pessoas devido ao preconceito. “Muitas vezes a gente sente que só somos nós que nos importamos com eles”, desabafa. O poder financeiro define o quão alta é a voz de alguém; pessoas ricas sussurram e são ouvidas enquanto pessoas pobres gritam para ter voz e aqueles que não possuem nada se acostumam a sequer serem considerados cidadãos.


PANDEMIA

Nos primeiros meses da pandemia do Novo Coronavírus, a medida tomada pela Prefeitura Municipal de Macapá juntamente ao Ministério Público foi o aluguel de um hotel para abrigar uma parcela da população em situação de rua. Com a duração de 3 meses, o contrato desse aluguel teve seu fim em junho de 2020 e as pessoas que se encontravam abrigadas tiveram dois destinos: ou remanejadas para o Aluguel Social ou voltavam às ruas.

O Aluguel Social é um benefício eventual destinado às pessoas em vulnerabilidade social e ajuda a pagar o aluguel de um local para a residência. No entanto, não são todos que conseguem e muitos e muitas acabam voltando às ruas.

Karoline Duarte é socióloga e atua no Centro Pop. Ela conta que o benefício durou 6 meses e não foi a melhor saída para essa população, pois o Aluguel Social é algo passageiro e destinado às pessoas que possuem meios para sair da situação de vulnerabilidade, seja por emprego ou por apoio familiar. O auxílio é efetivo quando quem o solicita passou por determinada situação e ficou sem moradia, como por exemplo incêndios e alagamentos, mas possui meios para se reestruturar no período de vigência do auxílio. “Para uma pessoa em situação de rua é mais complexo, porque tem que estar no Aluguel Social com outras políticas públicas, se não ela só passa aquele tempo lá e depois vai voltar para a rua”, conta a socióloga.

João Correa dos Santos foi um dos poucos que conseguiram o Aluguel Social. Com 61 anos, ele relata que adquirir o benefício foi algo muito bom, mas teme que com o fim tenha que voltar às ruas. “Foi algo bom pra mim, sair da rua e ter um teto e um banho é muito bom”, diz ele.

“O tempo não é suficiente para se organizar todo mundo que está vivenciando a pandemia e, principalmente, a pessoa em situação de rua. Ela tem muito mais problemas para conseguir se organizar e sair das ruas”, conta a psicóloga Rafaela.

O Centro Pop acolhe e alimenta, mas quem é responsável pela saúde dessa população é o Consultório na Rua, este conta com uma equipe multiprofissional de médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo e técnico em enfermagem. Eles levam aos residentes das ruas os serviços encontrados em uma Unidade Básica de Saúde.


Edifício do Centro Pop
"O Centro Pop visa dar apoio e acolhimento para a população em situação de rua". Foto: Ingra Tadaiesky

Karine Silva é psicóloga atuante no Consultório na Rua e conta que houve poucos casos de contaminação entre o público atendido. Não houve nenhuma morte registrada e aqueles que foram contaminados não apresentavam sintomas da doença.

Durante o período que o hotel estava em funcionamento, apenas seis casos de Covid-19 foram confirmados. Desde o início da pandemia até o momento de publicação dessa reportagem, 10 casos foram confirmados pelo Consultório na Rua, todos assintomáticos.

O protocolo de cuidado consistia no isolamento. “Eles não gostam de se sentir presos, não gostam de se sentir em um local que lembre, mesmo que minimamente, uma clínica. Não dá para ter esse teor de clinicagem com eles”, relata a psicóloga.

Para uma pessoa em situação de rua, essas ações possuem um tom de tutela que, para eles, é vista como se não pudessem ter o controle da própria vida. Um exemplo disso foi uma fuga de uma dessas pessoas do isolamento. “Os casos de Covid são os que menos entram. Os casos de agressões matam mais que o vírus”, conta Karine.


MEDO VISÍVEL

Durante um dia cansativo, a ânsia por chegar em casa se torna uma espera que parece não ter fim. Olhamos o relógio de 5 em 5 minutos, batemos pés ansiosos e dizemos “essa hora não passa!”. Para uma pessoa em situação de rua, essa hora realmente não passa e a espera por chegar à casa não possui um fim. Dormem onde dá, comem o que aparecer, estão jogados ao relento e enfrentam inúmeras dificuldades.

A violência é um fator agregador de medo e a situação piora quando esse agente da violência seria àquele destinado a proteção. Todos os entrevistados desta reportagem relataram situações de violência policial. Durante o período em que foi instaurado o toque de recolher, em 2020, nos primeiros meses da pandemia, pessoas em situação de rua se abrigavam em uma das praças centrais de Macapá, a Praça da Bandeira. No entanto, essa concentração resultou em abordagens policiais consideradas truculentas, a fim de dispersá-los do local.


Praça da Bandeira. Foto: Ingra Tadaiesky

“Eles sofriam alguma abordagem policial. Era de um jeito truculento, com situações bastante abusivas de violência física e humilhação psicológica”, explica Rafaela Coutinho, psicóloga do Centro Pop. Além disso, durante esses procedimentos, os poucos documentos que alguns deles possuíam eram extraviados.

Karoline Duarte conta que essa abordagem violenta é algo tão rotineiro para uma pessoa em situação de rua que elas contam dos abusos sofridos como anedotas. “É tão naturalizado para eles que a polícia é esse agente da violência que eles não sentem que têm direito de reclamar quando a polícia bate neles, quando ela extravia a documentação deles, a violência policial é constante”, explica.

A forma como uma pessoa em situação de rua enxerga a própria realidade é reflexo da forma como a sociedade a vê. A psicóloga Karine Silva relata sobre os profissionais que trabalham diretamente com essa população. Tentam protegê-los, mas afirma que vivemos em um contexto de higienização social. “Elas estarem nas ruas não é agradável, são sujeitos invisíveis, mas aos olhos de uma burguesia, ela dá medo e quando você tem a reação do medo você prefere eliminar essas pessoas do que ajudar”, explica ela.


DESEMPREGO LEVA PESSOAS À SITUAÇÃO DE RUA

João Correa dos Santos ou “Paraguai”, como prefere ser chamado, 61 anos, é uma pessoa em situação de rua. Essa história tem início há 22 anos, quando João saiu sozinho de sua cidade natal para a cidade de Macapá, nascido na fronteira brasileira com o Paraguai, Ponta Porã. Sua trajetória começa em 1999, quando chegou ao estado do Amapá. Trabalhava com a venda de picolés e sorvetes, porém logo foi acometido por doenças. Com três erisipelas nas pernas, diabetes e pressão alta, trabalhar se tornou uma atividade que beirava a impossibilidade.

Sem emprego, Paraguai não conseguia se sustentar e, sem alternativas, as ruas de Macapá se tornaram sua casa. Ele estava há mais de 17 anos em situação de rua até que, em 2020, conseguiu o auxílio Aluguel Social que o possibilitou alugar um quarto para morar. No entanto, o auxílio é temporário e ele pode, a qualquer momento, voltar para as ruas.

O estigma da pessoa em situação de rua é de ser a única culpada pela realidade que vive. Esse pensamento é costumeiramente ligado a vícios em drogas. João Amanajás conta que o principal motivo que leva alguém às ruas é o desemprego. “A gente ouve muito sobre a questão da droga e quando chegamos aqui acabamos desmistificando e vemos que o desemprego é o principal motivo deles irem para a rua”, explica o coordenador.


Em 2020, o Brasil atingiu a marca de 14,2% na taxa de desemprego e o Amapá fechou o ano com a taxa de desocupação em 15,8%, segundo IBGE. Karoline Duarte explica que esse cenário possui influências diretas da pandemia. “Houve um aumento não só de pessoas em situação de rua, mas no índice de vulnerabilidade social. Todo mundo que estava acima da linha da pobreza, com essa pandemia, entrou definitivamente nela”, conta a socióloga.

Um espelho dessa realidade foi o período em que a Prefeitura abrigou essa população no hotel. “Lá deu para a gente perceber como a pandemia estava impactando a vida das pessoas. Tinham pessoas que estavam nas ruas há 10, 20 anos, mas também tinham pessoas que estavam nas ruas há poucas semanas porque perderam o emprego ou porque tinham o mínimo de estrutura, e agora já não tinham nem essa”, relata a Karoline.


VIDAS NAS RUAS

Não há estatísticas acerca do quantitativo de pessoas em situação de rua que existem hoje no estado. O Centro Pop atende uma média de 30 a 40 pessoas por dia e o coordenador afirma que possuem o cadastro de mais de 200 pessoas, contudo, esse não é o número total da cidade.

Segundo dados do IBGE através de um levantamento feito pelo Banco Mundial em 2020, o Brasil ocupa o 9° lugar no ranking de países mais desiguais do mundo. Com a intensificação das desigualdades sociais decorrentes da pandemia, pessoas em situação de rua enfrentaram dificuldades singulares intrínsecas a sua realidade.

Diante do contexto pandêmico, o olhar da sociedade se tornou mais pesado sobre aqueles que residem nas ruas, o preconceito prévio agora se une ao medo da contaminação. O olhar sobe as pessoas de rua e a possibilidade da não higienização resulta em negação de esmolas e o aumento do afastamento social, pois já não conseguem o mesmo que antes.


Pessoa dormindo na rua.
Na rua, estão vulneráveis a fome, frio e violência. Foto: Ingra Tadaiesky

Com fome, frio, suscetíveis a doenças e a violência, a única válvula de escape dessa população é o consumo de drogas. “Imagina a pessoa com todos os direitos negados, que está na rua, que não tem um local adequado que compreenda suas necessidades básicas, ela acaba consumindo mais drogas porque é a forma que ela consegue amenizar a situação que vivencia, é para aguentar viver”, explica Rafaela Coutinho, psicóloga que trabalha diretamente com esse público.

O consumo de drogas se torna uma consequência de viver na rua. João Amanajás explica que muitas das pessoas em situação de rua só tiveram contato com as drogas depois de já estarem nas ruas.

A pandemia para um sujeito ignorado pela sociedade chega de uma forma diferente. Ele não carrega o mesmo medo e nem o mesmo desespero, esses sentimentos são rotineiros na vida dessas pessoas. Karine trabalha todos os dias com essa população e conta que o vírus do Covid-19 não os assusta.

“Eles estão constantemente à mercê da fome, do medo e de uma sociedade que não os quer, de uma rejeição, social. Então o Corona para eles é mínimo, não existe um medo, tanto que eles sempre falam pra a gente ‘o que é um vírus perto de tudo o que eu já passei?’”, finaliza.

O medo da morte, tão presente atualmente, é um sentimento que caminha lado a lado a uma pessoa em situação de rua. Para eles, a pandemia é apenas mais uma das muitas formas de morte.


NOTA: A assessoria da Polícia Militar do Amapá foi contatada e respondeu não haver registros de quaisquer tipos de agressão desse tipo e que a população deve fazer as denúncias na Ouvidoria da PM.


SERVIÇOS

Centro Pop:

Perpétuo Socorro, Rua Hugo Alves Pinto

Horário: 8h as 17h

Consultório na Rua

Serviço Móvel

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