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O pescador de almas mortas

Atualizado: 1 de out. de 2023

Conheça a história de seu Oracio, pescador antigo da cidade de Mazagão.


Por Eloani Gemaque

Em uma sexta-feira por volta das 5h da manhã, quando o dia ainda era escuro no interior de Mazagão Velho, Oracio já estava de pé, pronto para mais um dia de trabalho. Café feito a lenha, farofa de ovo, muita conversa e planejamento. Por volta das 6h, começou o movimento para retirar a malhadeira (arte de pesca usada na região Amazônica). Facão na cintura, bota, chapéu e saca nas costas, o pescador estava pronto.


Aproveitei o momento e perguntei se poderia ir junto, seu Oracio ficou surpreso ao perceber o meu interesse, mas não soube disfarçar a empolgação em ver uma jovem jornalista interessada no cotidiano de um pescador e sem cerimônia soltou o que seria quase um grito, “claro que pode, mas já vou avisando, vai voltar cheia de lama”, disse gargalhando. Após 15 minutos de caminhada mato adentro, seu Oracio ia me contando que chegara naquelas terras em 1990, “era uma época boa, era difícil, mas a vida era simples naquele tempo”, dizia ele apontando para as árvores, a fim de me mostrar a família de macacos que passava naquele exato momento. Depois de uma longa caminhada, chegamos no local. Era um pequeno riacho, um pouco longe de casa, mas perto o suficiente para irmos a pé.


Enquanto ele retirava os peixes da malhadeira, aproveitei o silêncio e perguntei como foi que tudo começou, e por que o chamavam de “o pescador de almas mortas?”. Sua história chegou aos meus ouvidos em uma roda de conversa entre amigos e familiares, e desde então não consegui esquecer. E na madrugada de sexta feira do dia 4 de agosto, estava eu na estrada de Mazagão Velho, a caminho da Fazenda Aruã (Em tupi-guarani significa, “quieto; manso; pacífico”, e na língua aruaque, significa “onça”), um nome que descreve de maneira certeira o dono da terra.


Antes de responder, ele me dá um breve resumo de sua vida. Nascido em 2 de agosto de 1972, na fazenda Matinada, em Soure, município de Ilha do Marajó- Pará, seu Orácio conta que naquela época nascer em hospital era coisa de “gente rica” e veio ao mundo pelas mãos de um parteira, como era comum. Filho de Ernesto Pamplona Maya com Maria Deusa Cantão, e o caçula entre 5 irmãos, seu Orácio decidiu sair de casa cedo para ganhar a vida.


Enquanto falava sobre sua trajetória de infância percebi as mãos calejadas se entre esfregando, as testas franzidas e a pele queimada do sol, logo me veio o pensamento do quão árduo deve ter sido sua jornada.


Já a caminho de casa, com a saca cheia de peixe, seu Oracio começa a contar, “Eu tinha uns 17 anos quando tudo aconteceu, eu morava na vila Cunani já fazia um tempo, eu era moleque, mas já sabia caçar, pescar e tirar açaí. Era outra época, não tinha essa facilidade de hoje não”, contou ele. Percebi que seu olhar mirava longe na trilha que seguimos de volta para casa, como se tivesse voltado no tempo.


Sem demora ele retorna a conversa, agora com uma posição séria e concentrada, ele ajeita a saca nas costas e continua. “Peguei o casco (um tipo de canoa) e resolvi pescar. Comecei a remar, mas era tranquilo porque eu pegava a vazante do rio para ir e a enchente para voltar, daí não tinha tanto esforço. Mas como não peguei nada resolvi voltar, e foi aí que começou”, ele fez uma pausa dramática e eu quase tendo um chilique de tanta curiosidade em saber o que havia acontecido, não pude deixar de mostrar minha explicita curiosidade e soltei um “e aí, aconteceu o que?”. Já na entrada da casa, ele solta a saca no chão e encosta na parede de madeira, e com um sopro de alívio, ele olha bem no meu rosto, mostrando satisfação em ter me despertado a curiosidade que não pude conter.


E como se tivesse voltado ao corpo, ele retornou à memória que contava, “Quando eu estava voltando para vila, percebi que tinha muitos pássaros ao redor de um certo ponto da água, pensei que era peixe, pois normalmente é, mas quando fui me aproximando, me deparei com um corpo”, disse. Nesse momento, paralisei. Enquanto ele lavava o peixe no tendal, contava o quanto foi aterrorizante aquele momento e que apesar de não ter tido uma vida fácil até ali, se deparar com um corpo naquela idade, naquele ambiente, lhe desencadeou um medo profundo, que até então nunca havia sentido.

Nessa altura da conversa, o peixe já estava pronto para ser cozido. Em uma panela com chicória, cheiro verde, cebola e urucum plantados ali mesmo, já podíamos sentir o aroma irresistível de uma comida feita a lenha. Mas sem perder o foco, seu Oracio continuou afirmando que para alguém que dependia da caça e da pesca, olhar seu lugar de provisão sendo manchado por uma fatalidade poderia ser uma barreira para prosseguir, mas ele não hesitou em tomar uma providência. Sem pensar duas vezes, retornou à vila para pedir ajuda. Contou que ficou apavorado, mas não paralisou, que o medo apesar de querer dominá-lo era menor do que o desejo de fazer o certo, que em sua consciência de apenas 17 anos, era dar aquela pobre alma um pouco de dignidade.


Após conseguir ajuda dos outros moradores da vila, ele retornou ao local onde o cadáver estava, com o auxílio dos demais, o corpo foi resgatado usando o seu próprio casco. Ao retornar percebeu os olhares e os cochichos, “O mais difícil foi ter que lidar com as falsas acusações, eu até entendia, imagina só um homem, por que não importava a idade não, eu já era visto como homem maduro não tinha essa de adolescente, voltar do rio falando que tinha encontrado um cadáver na água, meio suspeito não?” contou. Ele fez uma pequena pausa e tentou recompor suas ideias que foram longínquas quanto a situação.

Era hora do almoço, nos sentamos ao redor da mesa de madeira, enquanto ele tirava o peixe do fogo, eu enchia a vasilha que antes era de manteiga e hoje é o lugar perfeito para a farinha “da baguda” (termo belenense usado para coisas grandes) como seu Oracio gosta de chamar. Enquanto comíamos o delicioso caldo de peixe, o pescador decidiu continuar a história.


Seu Oracio contou que descobriu muito tempo depois que aquele corpo na verdade era de um estrangeiro que viajava em uma embarcação clandestina de Caiena – Guiana Francesa e que cairá na água durante a noite. Os amigos perceberam que faltava alguém, mas era tarde demais. Alguém cujo a noite decidiu embriagar-se e por um descuido se desequilibrou. O mistério ficou ao vento, o mesmo vento que talvez o tivesse levado a cair da embarcação e o empurrado até as margens do rio Cunani, indo de encontro ao pescador que apesar do medo inesperado, foi tomado por compaixão ao ver aquela pobre alma sendo abandonada.


A conversa fluirá tão prazerosa que mal percebi as horas se passarem. E das 5h da manhã já estávamos beirando as 16h da tarde. Seu Oracio, depois de contar aqueles últimos detalhes de sua jornada, começa a bocejar. Senti que estava cansado, e sem muitas delongas ele suspira “já tá escurecendo, o ramal vai ficar bem escuro pra voltar pra estrada, melhor se arrumar logo, aqui a gente dorme cedo sabe, mas se quiser ficar, tenho rede e mosquiteiro, é simples, mas dá pra dormir”, finaliza com um ar de constrangimento.


O ambiente se tornou em uma mistura de angústia e alegria pelo fim. Apesar do cansaço, ele fez questão de me levar até o outro lado do lago. Na hora da despedida, ele retira do casco um balde de manteiga que ele usava para carregar água, cheio de peixe, limão e alguns ramos de chicória. Ele me entregou e disse “toma, pra você almoçar amanhã, é pouco mas é de coração, e tudo nativo” disse com os olhos cheios de orgulho. Naquela altura do campeonato, recusar seria uma grande ofensa, então o agradeci e prometi que retornaria.


Já com tudo pronto para ir embora, e pensando que o assunto já tinha encerrado, Seu Orácio segurou o meu braço como se tentasse explicar pela última vez sua história, disse “era um corpo, mas também era história, era importante pra alguém, não seria certo deixá-lo ali”. Essas foram suas palavras de despedida. Caminhando pelo ramal, agora com outra visão sobre cada detalhe daquela imensidão natural, refletir sobre quantas histórias o Seu Oracio devia ter, não apenas ele, mas todos os habitantes daquelas redondezas. O homem interiorano está cheio de histórias de bravura e coragem, testemunhando e sendo protagonista de tantas situações que o homem da cidade não faz ideia.


Chegando ao transporte que me esperava na “boca da estrada” com destino a Macapá, a imagem do pescador segurando o meu braço em nossa despedida, me fez perceber o quanto as pessoas anseiam por ser ouvidas e quanto o “homem da cidade” valoriza o “homem de fora” e negligência a sua própria memória. E após aquela longa jornada, quase dormindo no transporte, lembrei de uma frase de Chesterton que dizia que, “Cada época é salva por um pequeno punhado de homens que têm coragem de não serem atuais”.


*Perfil produzido na disciplina de Jornalismo Literário, ministrada pela professora Laiza Mangas.


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