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Da tradição ancestral à economia solidária: o fazer das louceiras do distrito do Maruanum

  • Foto do escritor: Alan Milhomem
    Alan Milhomem
  • 7 de jun.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 7 de jun.

Mulheres transformam prática familiar em geração de renda e reafirmação cultural em comunidades do interior do Amapá.


Por Maria Clara Prudêncio

Carmosina e suas louças na varanda de casa. Foto: Maria Clara Prudêncio.
Carmosina e suas louças na varanda de casa. Foto: Maria Clara Prudêncio.

Nas margens do rio Maruanum, uma prática secular se destaca e resiste ao tempo, na qual as mãos femininas moldam mais do que louças: moldam memórias, sustento e identidade. No Quilombo do Maruanum, distrito a cerca de 70 km de Macapá, capital do Amapá, duas comunidades compartilham uma profunda conexão com o barro. A matéria-prima mantém viva uma técnica passada de geração em geração, que une a família, os saberes de uma tradição e reflete as múltiplas identidades ribeirinhas, afro-brasileiras e indígenas da região.


Na Vila do Carmo e na Vila Santa Luzia, os elementos naturais não são apenas cenários, são agentes sagrados da vida cotidiana. O barro, matéria principal para a produção das louças, é retirado uma ou duas vezes ao ano, durante o verão, com todo o respeito ao meio ambiente e ao território alagado, chamado de “barreiro". Esse material, misturado ao resíduo fino e pilado da casca do caraipé, é transformado em uma argila simbólica, cuidadosamente trabalhada pelas louceiras.


O processo não segue padrões técnicos, mas obedece um ritual que envolve religiosidade, sabedoria, empirismo e uma ciência própria, moldada pela observação e pelo tempo. É uma prática que expressa sustentabilidade ambiental e liberdade criativa: são as próprias mulheres que definem como vai ocorrer a produção, o formato, o valor, os limites e as possibilidades de cada peça.


Louças feitas por Carmosina. Foto: Maria Clara Prudêncio.
Louças feitas por Carmosina. Foto: Maria Clara Prudêncio.

Com uma mesa cheia de louças prontas para a etapa de queima, Carmosina Pereira, residente da Vila do Carmo, lembra dos aprendizados herdados da mãe, observados ainda na infância. Ela conta que tudo começa em um terreno de barro, onde as mulheres cavam algo parecido com um poço, que ocorre após pedir permissão à "mãe do barro", ser mítico cultuado pelas louceiras, que protege o processo e intercede para que a argila tenha qualidade.


“A gente cava, e parece que vai cavar um poço. Cavamos a primeira, a segunda, a terceira e lá pela quarta que a gente encontra um material mole, então coletamos esse barro e depois de retirar, no mesmo buraco que cavamos, a gente também deixa uma peça pra mãezinha, para agradecer pela argila e para que ela proteja as nossas louças e elas queimem sem quebrar”, conta Carmosina, que exemplifica como cada etapa é regida por um equilíbrio entre tradição, fé e natureza.


“O lucro é uma ajuda boa”: a economia solidária na comercialização das louceiras


Com foco na autogestão e na cooperação, a economia solidária atua como uma alternativa viável e transformadora quanto aos sistemas econômicos convencionais. Nesse modelo socioeconômico, a geração de renda é voltada para a produção, comercialização e consumo de maneira sustentável. Presente em áreas urbanas e rurais, essa lógica de organização promove mais protagonismo para práticas ligadas à cultura local e ao uso consciente dos recursos naturais.


De acordo com a última atualização do Cadastro Nacional de Economia Solidária (CADSOL), em 2016, o Brasil tinha registrado 20.670 empreendimentos que atuam no formato, do qual participam 1.425 milhão de pessoas. No CADSOL, os empreendimentos econômicos solidários possuem diferentes formas de organização, considerando cooperativas, associações e até mesmo grupos informais. É nesse cenário que se insere a prática das louceiras do Maruanum, que unem o saber tradicional, cooperação interna e geração de renda de forma sustentável e solidária.


“Antes eu participava de feiras para vender, mas hoje eu consigo produzir aqui mesmo e sempre vem uns turistas, gente dos outros municípios e muitos são de Macapá. Eles visitam, conhecem a gente e já chegam perguntando das louças e do preço, as vezes a gente vende por aqui entre nós mesmo, mas a maioria que compra é de Macapá”, relata Carmosina, que aponta qual o público-alvo na comercialização das suas peças.


Para a louceira, as louças são feitas para complementar a renda, as vendas ajudam a garantir a compra dos materiais para a produção das peças e das coisas de casa. Além disso, o processo é uma forma de integração, já que a tradição das louças é compartilhada com outras mulheres ceramistas, que muitas vezes, trocam saberes e ideias sobre o fazer e o ser das louceiras. “Eu gosto e é algo que consigo vender rapidinho. É uma cultura, então a gente ama fazer louças e gosta de compartilhar pra próxima geração manter a tradição. Já ensinei pra minha filha, uma amiga, ensinei pra uma prima e até meus netos, então a gente ensina a cultura, mas ensina que dá pra ganhar dinheiro fazendo isso”, diz ela.


A forma de produção das louceiras contrapõe a lógica tradicional do crescimento econômico, pois não está centrada na geração de riqueza. Para elas, o olhar comercial é focado no desenvolvimento sustentável, que transforma a atividade ceramista em um meio de promover melhorias na qualidade de vida das artesãs e da família, ao mesmo tempo que ajuda a manter viva uma tradição muito importante para a identidade feminina local. O fazer das peças é também uma expressão cultural e artística. Cada peça moldada no barro carrega significados únicos, construídos a partir das vivências individuais e coletivas das mulheres.


Na Vila de Santa Luzia, onde reside Maria Silva, mais conhecida como Mariquinha, as vendas acontecem enquanto há barro armazenado e insumos disponíveis. Às vezes, a demanda é tão alta que o barro se esgota antes mesmo da próxima coleta, que só acontece no verão, período em que se garante matéria-prima para manter a produção durante todos os meses do inverno amazônico amapaense.


“Eu recebo até encomenda, o pessoal vem aqui conhecer e sempre quer uma panela e um fogão, então já vendo um conjunto de duzentos reais. A maioria que compra é de Macapá, mas já fiz venda para a Guiana Francesa e também já vendi pra fora do Brasil, lá no Canadá. Uma vez veio um casal da Guiana aqui e eles se empolgaram e compraram várias louças de uma vez, então se tiver louça pronta e se meu estoque de barro estiver bom, consigo fazer e vender aqui mesmo”, relata. Mariquinha. Ela também conta que algumas pessoas compram as louças no Maruanum para revender mais caro em outros territórios e cidades.


Mariquinha e uma das panelas moldadas por ela. Foto: Maria Clara Prudêncio.
Mariquinha e uma das panelas moldadas por ela. Foto: Maria Clara Prudêncio.

O valor das peças é definido por cada artesã, com base no design, no tamanho e no que consideram mais justo. As peças produzidas por Carmosina e Mariquinha seguem uma faixa de preço semelhante, variando entre R$ 50 e R$ 110, dependendo do modelo. O valor também pode mudar conforme as especificidades de cada encomenda e os custos dos materiais utilizados. Ainda assim, as famosas louças do Maruanum mantêm uma precificação acessível considerando o valor do trabalho e o processo cultural e ritualístico da produção.


Aposentada, dona Mariquinha compartilha que a sua renda complementar é feita unicamente através das louças. “Eu amo fazer as peças, todo esse saber eu aprendi com minha mãe e com minha tia, e foi porque eu amo. Mas o lucro é uma ajuda boa, meu marido trabalha na roça e eu já não trabalho mais nessa parte, então no que eu ajudo da casa é por conta das louças. Quando sobra um dinheiro, a minha filha coloca na minha conta e fica lá guardado pra eu investir em mim e fazer minhas coisinhas, mas quando precisa de algo em casa eu sei que posso contar com essa venda”, afirma.


Além da venda local, as louceiras do Maruanum contam com uma organização formal, a Associação de Louceiras do Maruanum (ALOMA), da qual Mariquinha e Carmosina fazem parte. Algumas ceramistas também possuem um espaço de venda e exposição na Casa do Artesão, localizada na capital Macapá, como é o caso da ceramista Telma da Costa. “Eu faço tanto as louças tradicionais quanto as louças pintadas. Também gosto de fazer decoração, tipo porta-treco e suporte para incenso. E essa é a minha principal fonte de renda, porque eu deixo minhas peças na Casa do Artesão. Então, é bom também porque quem visita a cidade já vai lá e consegue comprar uma louça aqui do Maruanum”, conta Telma.


Panelas pintadas a mão, feitas por Telma. Foto: Maria Clara Prudêncio.
Panelas pintadas a mão, feitas por Telma. Foto: Maria Clara Prudêncio.

Em abril de 2023, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) aprovou uma resolução destacando como a economia solidária pode contribuir para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sendo um meio para promover o trabalho decente, aliviar questões econômicas e fomentar a inclusão social. O relatório também destaca a potência desse modelo socioeconômico, especialmente quando enraizado nos modos de vida e de produção dos trabalhadores e trabalhadoras.


Assim, guiadas pelos ciclos da natureza e pelos saberes transmitidos de geração em geração, as louceiras do Maruanum moldam panelas, cuias, potes, xícaras, travessas e objetos de decoração que hoje circulam por diversas regiões do Amapá, do Brasil e até do exterior. Mais do que peças artesanais, cada louça carrega a memória de um território, a força de uma tradição e as vivências das mãos que moldam o barro.


Com o tempo, essa prática se consolidou como atividade essencial para a economia local e para a valorização cultural das comunidades do Maruanum, transformando o conhecimento ancestral em sustento, autonomia e identidade preservada.



“Tenho muito medo de que um dia a tradição acabe”: a cultura das louças para as próximas gerações


Apesar da importância da tradição em diversos aspectos da comunidade, as louceiras mais experientes também expressam a preocupação de que esse saber não seja mantido ao longo do tempo. Mariquinha relata a falta de interesse das novas gerações em aprender a fazer louças e em participar de todo o processo, o que pode, no futuro, comprometer a continuidade da prática e levar ao possível apagamento da identidade das louceiras.


“Tenho muita preocupação e medo de que um dia a tradição acabe. Que quando a gente [as mulheres mais velhas e experientes] partir, a nova geração não siga fazendo louças e levando para frente a nossa cultura. Infelizmente são poucos os que têm interesse", lamenta Mariquinha. Ela também relembra o episódio em que as louceiras realizaram uma oficina em parceria com escolas municipais e estaduais. Na época, ela lamentou que os únicos interessados foram as crianças do fundamental, que ainda não compreendiam completamente a importância e o significado das louças.


É nesse cenário que Edilene Chagas se encontrava até o final de 2019. Louceira e professora de língua francesa, ela conta que, por muitos anos, não demonstrava interesse pela tradição, apesar de sempre ter acompanhado a avó, José Maria Chagas, no ofício das louças.


Louça feita por Edilene. Foto: Maria Clara Prudêncio.
Louça feita por Edilene. Foto: Maria Clara Prudêncio.

Segundo Edilene, sua relação com o barro começou de forma conturbada. Foi em um momento difícil da vida que ela decidiu tentar produzir as primeiras peças, com o apoio da avó, que tentou transmitir todo o conhecimento que carregava. Ao longo do processo de aprendizagem, Edilene percebeu que fazer louças passou a ser um refúgio — uma prática que a ajudava a enfrentar os momentos desafiadores. Com o tempo, entendeu que a tradição ia muito além da produção, também se tratava de sociabilidade, vocação, afeto e, para ela, um significado único: as louças se tornaram parte de um processo de cura pessoal.


“Produzir louças foi um resgate, o barro ajudou a salvar minha vida. Falo que foi um resgate tanto da minha identidade enquanto mulher de uma comunidade quilombola, quanto algo mais pessoal, ligado ao meu emocional. Em 2019, enfrentei uma fase muito severa, com vários problemas de ansiedade e depressão. Nessa época, me conectar com a tradição e começar a produzir louças foi o que me ajudou a me resgatar como pessoa”, compartilha Edilene.


São diversos os processos que levam essas mulheres e a comunidade a seguirem perpetuando a tradição, cada uma com seus próprios motivos, relações, crenças e sentimentos. O desejo das louceiras mais experientes é que a natureza e a “mãe do barro” sigam em harmonia com a cultura, para que as próximas gerações também sintam orgulho de carregar o título de louceiras do Maruanum, assim como elas sentem hoje. Ensinar e transmitir a importância desse saber é essencial para que novas louças continuem sendo moldadas pelas mãos do futuro, sempre guiadas pelos conhecimentos herdados no passado.



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