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“Todos os saberes são importantes” diz Fábio Merladet da Universidade Popular dos Movimentos Sociais


(Foto: Martha Sophia/AGCOM)

Fábio Merladet é doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, projeto criado em 2003 que visa contribuir para o conhecimento recíproco entre os movimentos sociais, através de oficinas horizontais. No Amapá para participar de um curso sobre Organização Comunitária, Fábio Merladet conversou com a AGCOM sobre a ecologia de saberes e a importância de uma visão não-hegemônica.

 

AGCOM: Como você descreve a Universidade Popular dos Movimentos Sociais?


Fábio Merladet: Sou o coordenador de uma experiência no mínimo inusitada dentro do espaço acadêmico, a Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Muita gente estranha quando se diz esse nome, porque ao longo da história nós temos visto que universidade e popular são contraditórios, e universidade e movimentos sociais mais ainda. Então como é que isso? Uma universidade que é popular? Uma universidade que é dos movimentos sociais? Como é que funciona isso? Então é uma experiência inusitada, ainda mais pelo fato de que, além de ser popular e dos movimentos sociais, é também uma universidade que não possui um campo físico, uma estrutura física como as universidades convencionais. Não tem grades curriculares, não tem professores, não tem sequer alunos. Uma universidade sem alunos, é possível conceber isso? A UPMS é essa experiência um bocado esquisita do ponto de vista das universidades convencionais. E como ela funciona? Nós não damos cursos, nem diplomas, nem certificados. A ideia não é essa. A gente adota o nome Universidade Popular dos Movimentos Sociais para disputar o termo "universidade", mas a ideia é promover a articulação, o diálogo e a solidariedade tanto entre intelectuais e pesquisadores com os movimentos sociais, como entre os próprios movimentos sociais. Porque o que a gente percebe é que há muito preconceito e muita discriminação mesmo dentro das lutas sociais. A UPMS acaba sendo um espaço onde diferentes lutas podem aprender.


"...a ideia é promover a articulação, o diálogo e a solidariedade tanto entre intelectuais e pesquisadores com os movimentos sociais, como entre os próprios movimentos sociais" - Fábio Merladet

AGCOM: No contexto atual, como trilhar a linha entre questionar a hegemonia da universidade e o negacionismo?


FÁBIO MERLADET: Talvez muitos não saibam que a primeira universidade do Brasil foi criada por ocasião da vinda de um rei belga. O Brasil queria dar um honoris causa para esse rei e não existiam universidades no Brasil, e um honoris causa só pode ser ofertado por uma instituição universitária. Então criaram às pressas uma universidade no Instituto de Cegos de São Paulo - que foi desarticulado e os cegos tiveram que ir para outro lugar - para se criar ali uma universidade para ofertar honoris causa para um rei da Europa. A história das nossas universidades, não só no Brasil, mas no mundo em geral, é um histórico profundamente elitista, conservador. Um histórico inclusive colonial. Patriarcal também, durante muito tempo o acesso das mulheres na universidade foi difícil. Hoje em dia o acesso a negros, indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas ainda é extremamente complexo, por mil motivos que talvez não caiba a gente comentar aqui. E a Universidade Popular dos Movimentos Sociais vem criar essas pontes de diálogo das universidades convencionais com essas populações que foram historicamente invisibilizadas, historicamente apartadas da universidade. E mais do que isso, historicamente a universidade sempre trabalhou contra essas populações. Então como a gente pode criar um contexto em que a universidade inverta essa prioridade e comece a trabalhar não contra essas populações, mas em conjunto com elas, a favor de suas lutas, dos seus movimentos de resistência?


AGCOM: É de certa forma um processo de revalorização, é dizer “o conhecimento científico é valioso, mas esses outros aqui também são”?


FÁBIO MERLADET: Esse é um ponto importante e merece algumas palavras a mais. Durante muito tempo, mesmo o as experiências mais progressistas dentro da universidade - quero dizer, mesmo as experiências dentro da universidade que queriam valorizar as populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas, as populações em situação de rua ou os movimentos sociais - Durante muito tempo mesmo essas experiências progressistas dentro da universidade tinham um entendimento de que era preciso levar o conhecimento científico à essas populações. Daí o termo bastante famoso e controverso da "extensão universitária". Por que extensão? Extensão é a ideia de que a universidade vai estender os seus braços até essas comunidades, vai levar a sua luz, vai iluminar essas populações com o seu conhecimento. Que conhecimento é esse? O conhecimento acadêmico, o conhecimento hegemônico. Mas recentemente essa ideia tem sido muito questionada, a partir de uma nova interpretação dos saberes, uma interpretação poderíamos dizer pós-colonial. A ideia de que todos os saberes são importantes. E que o conhecimento científico é apenas um desses saberes. Um conhecimento muito importante, obviamente. Não está aqui em causa a desvalorização do conhecimento científico. Nós vivemos numa época em que a ciência tem sido atacada e não é de forma alguma essa a nossa proposta aqui. A ideia é que a ciência saiba dialogar com outros saberes e outros conhecimentos em pé de igualdade, não como superior. Geralmente as comunidades vêm dialogar com a ciência num contexto em que o conhecimento científico estrutura o diálogo. Isso é perverso, porque os saberes só conseguem se apresentar como saberes que podem ajudar em alguma coisa, mas são sempre saberes menores. Dificilmente existe um diálogo horizontal entre o saber científico e os demais saberes que habitam o mundo, a nossa existência, a nossa realidade. E na Universidade Popular dos Movimentos Sociais a gente cria metodologias para que a ciência possa dialogar com esses outros saberes, mas não a partir dos seus próprios termos. A ciência vem convidada por esses outros saberes a expressar o seu ponto de vista, mas não como a solução dos problemas, nem como o saber que vai estruturar a forma como vai ser dada os encaminhamentos. Nós chamamos de Ecologia de Saberes essa forma de diálogo e articulação entre os muitos saberes que compõem a diversidade sócio cultural do nosso país.

Oficina da UPMS em São Paulo, de 7 à 9 de fevereiro de 2019. (Foto: Reprodução/Arquivo UPMS)

AGCOM: O curso em que irá participar esta semana é sobre organização comunitária. Em sua visão, quais os principais desafios para essa organização, o engajamento social hoje?


FÁBIO MERLADET: Eu vejo que a organização comunitária enfrenta pelo menos dois desafios de articulação. Por um lado, o desafio de articular as comunidades com a universidade, com pesquisadores, com acadêmicos, para que as universidades possam favorecer e estar ao lado dessas lutas. É muito importante, por exemplo, para as lutas das populações ribeirinhas estarem articuladas com as universidades, o conhecimento científico e tal. Esse é um desafio, mas o outro desafio, talvez mais complexo e que tem menos visibilidade, é o de estas populações também serem capazes de articularem-se entre si. Isso é muito mais difícil porque não há recursos para isso. Como a universidade é financiada, há intelectuais progressistas dentro dela que fazem esse trabalho - vamos chamar com esse termo não muito adequado - de "extensão", ou seja, que levam a universidade até essas comunidades, que criam pontes de diálogo. Esse caminho está de certa forma trilhado porque há financiamento para isso. Há vários setores da sociedade que financiam o diálogo da universidade com essas comunidades. Agora algo mais complexo e mais difícil e para o qual há menos fontes de financiamento é o diálogo e articulação das próprias comunidades entre si. Não necessariamente passando pela interlocução com a universidade. A universidade deveria ser um dos pontos da articulação e não centro para o qual tudo se converte. Desenhando mentalmente, temos muitas comunidades ao redor de uma área e a comunicação entre essas comunidades não deveria ter que passar por um centro para chegar às outras. Elas deveriam se articular entre si. Isso é mais complexo e é também isso que a gente tenta fazer nas oficinas e nas atividades da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Não só um diálogo entre movimentos, comunidades e a universidade, mas também um diálogo direto entre movimentos, sem necessariamente passar por essa intermediação dos intelectuais.


AGCOM: Boa parte do público da AGCOM é universitário, imerso nesse contexto da academia. Então é possível manter essa perspectiva não-hegemônica mesmo dentro da pesquisa científica? Qual seria o papel do pesquisador-ativista nesse sentido?


FÁBIO MERLADET: O professor Boaventura de Sousa Santos, que é um dos fundadores da UPMS, fala muito do desafio e da necessidade de nós formarmos "rebeldes competentes". Quê que é isso de rebeldes competentes? Nós precisamos ser rebeldes, obviamente. Precisamos enfrentar esse contexto hegemônico que nós vivemos, um contexto até eu diria proto fascista. Nós vivemos um governo e um contexto de morte, de destruição das políticas sociais, de envenenamento, de sofrimento humano injusto. E como os estudantes da graduação, mestrado e doutorado podem se posicionar diante desse contexto de sofrimento, morte e injustiça? Sendo rebeldes, mas também sendo competentes. Não basta a rebeldia por si só, é preciso estudar muito, é preciso conhecer muito. Não só o conhecimento acadêmico hegemônico, não só as obras e os autores hegemônicos, mas também os outros saberes, os outros conhecimentos. Os conhecimentos invisibilizados, os autores que são por vezes desprezados nas nossas academias. É preciso conhecer muito, ser muito competente para aí sim nós podemos ser rebeldes, podermos apresentar uma outra alternativa a isso que está posto hoje.

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