A reforma da biblioteca completou um ano em fevereiro e reinauguração tem previsão para ocorrer ainda em maio.
Por Tassia Malena
“Amo esse lugar”. Foi assim que Alessandro Cardoso, 35 anos, professor, pesquisador e frequentador antigo da Biblioteca Pública Elcy Lacerda (BP) declarou o quanto o local representa para si. Amante da literatura desde muito cedo, atualmente ele mora no município de Ponta das Pedras, no arquipélago do Marajó, no Estado do Pará, onde inicia uma nova relação com a biblioteca local, porém cheio de saudades. Para ele, a paralização do atendimento ao público representa uma grande perda para a população, além de ser “um problema para quem faz pesquisa ou precisa estudar lá. Muitos alunos só têm um turno para estudar, muitos concurseiros também frequentam a biblioteca”, conta.
Em obras desde fevereiro de 2022, a BP precisou restringir a princípio o horário de funcionamento das 8h às 18h para das 8h às 12h e, posteriormente, até a completa suspensão das atividades. Atualmente, o expediente no local é exclusivamente interno e dedicado à catalogação, recuperação e preservação de materiais didáticos, literários, documentais e históricos para possível reabertura em maio de 2023.
Embora não preveja a ampliação do prédio, melhorias estruturais estão previstas, como a reforma dos banheiros, com a inclusão de um banheiro totalmente adaptado, além da recuperação do elevador e a adaptação completa do espaço para pessoas com deficiência. Além disso, há a criação de um segundo ambiente externo e a revitalização do já existente para realização de eventos, a concepção de um espaço interno destinado a encontros e reuniões de grupos da terceira idade. A revitalização das seções já existentes e a criação de outras novas, bem como a promoção de um laboratório de informática com acesso à internet aos usuários estão no planejamento.
A reforma também promete duas outras novidades: a adesão ao acervo disponibilizado em doação pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) para a criação de um departamento exclusivo voltado para a temática do meio ambiente; e a futura digitalização do acervo para a promoção da acessibilidade remota pelo público externo. A medida tem a intenção de estender a diversidade do material catalográfico da BP para os demais municípios do estado, como também para qualquer lugar do Brasil e do mundo.
Wilza Oliveira, 45 anos, também é frequentadora de longas datas da biblioteca. Para ela, “a redução do tempo destinado ao público é, sem dúvida, uma perda significativa para a população geral, pois desestimula o hábito de ler livros e de pesquisar diretamente nos acervos, que muitos nem sabem de sua existência devido ao tempo gasto com a internet”. Wilza é professora, tradutora e começou a frequentar a biblioteca no ano de 2010, segundo ela “quase que diariamente”. A relação estreita com o local se estendeu até 2018, quando deixou o Brasil para morar no México, onde reside desde então.
Ela afirma que “a reforma já era para ter sido realizada, infelizmente há um descaso com a educação, sem falar que a biblioteca faz parte da história da nossa cidade”. Alessandro Cardoso também ressalta o mesmo ponto quanto à importância histórica, social e cultural da BP para a cidade de Macapá, especialmente no que tange à educação. “A biblioteca é um patrimônio, pois por muitos anos foi fonte de pesquisa, irradiou conhecimento e cultura por meio de seus eventos e estímulos à leitura”, destaca.
Enquanto repórter e frequentadora antiga, também ressinto a falta que a BP tem feito enquanto espaço de acolhimento à população, de liberdade criativa e de produção de conhecimento. É curioso perceber um espaço como um algo mais personificado por meio de sensações e lembranças. Minha relação com a BP começou no ano 2000, quando cheguei com minha família na capital. De lá para cá, ela está presente em muitas memórias, nas mais diferentes fases da vida.
A mais marcante delas foi o dia em que pude criar meu próprio cadastro para a locação de livros na circulante. À época ela ficava no piso térreo, depois da seção infantil. Até aquele momento, minha condição era a de dependente por ser menor de idade, ou seja, para que eu pudesse ter acesso ao acervo, precisava da inscrição do meu pai. Então no dia seguinte ao meu aniversário de 18 anos, eu me dei um cadastro só meu e que acabou por se tornar um presente para a vida inteira. Hoje, passo em frente a ela e a vejo vazia.
O nascimento de Atena
Situada presentemente na “curva do rio mais belo com a linha do equador”, a BP além de ponto turístico, é também referência para absolutamente tudo para quem é Tucuju da gema e para quem tem intenção de ser. Ela fica localizada, abençoada e bem servida, levando-se em consideração que à esquerda dela está a Igreja Matriz de São José; em frente está o Teatro das Bacabeiras; aos fundos, tem-se o Largo dos Inocentes, e tudo isso temperado pelo cheiro e pelo sabor da venda de Tacacá da saudosa Dona Bebé. Tudo isso ali, na beira da subida da Rua São José, entre as Avenidas General Gurjão e Presidente Vargas, no centro da cidade. Contudo, nem sempre ela esteve lá, no lugar onde hoje se encontra.
Segundo a plataforma Literatura no Amapá, alimentado pelo escritor Paulo Tarso Barros, que também é membro da Academia Amapaense de Letras, presidente da Associação Amapaense de Escritores, servidor público na BP, a princípio, a biblioteca foi criada a partir do acervo doado pelo Dr. Acylino de Leão (19888-1950), médico, político e acadêmico da Academia Paraense de Letras, e seu primeiro ponto físico foi uma residência particular localizada na Avenida Mário Cruz, bairro Central de Macapá, quando o Amapá ainda era anexo ao Pará. Hoje, este prédio abriga o Museu Histórico Joaquim Caetano.
Contudo, há controvérsias. De acordo com o escritor, professor, membro da Academia Amapaense de Letras e atual diretor da BP, José Queiroz Pastana, em homenagem ao centenário de nascimento do Diplomata Barão do Rio Branco, a BP, que já existia desde 1945, se tornou em 1957 um anexo da escola, que leva o mesmo nome da personalidade, erigida posteriormente. “Na verdade, ela começa, a biblioteca surge num daqueles anexos da Escola Barão do Rio Branco. Tem dois anexos lá, dois prédios. Então primeiro foi construído esse anexo da biblioteca, depois que construíram o da escola”, conta.
Nesse primeiro momento, a BP dividia o espaço com o primeiro cinema do estado, o Cineteatro Territorial - reinaugurado este ano nos mesmos moldes de quando foi construído - ambos implantados na época do interventor Janary Gentil Nunes, juntamente com outras obras públicas. Em 1950, a sede foi transferida para um prédio localizado em frente à Escola Normal de Macapá, posteriormente denominado Instituto de Educação do Amapá (IETA). “Houve a necessidade dela sair de lá por conta do espaço que não comportava mais, tanto do acervo de livros quanto da demanda de usuários. Aí ela foi lá para aquela escola Pequeno Príncipe. Aquele foi o primeiro espaço dela”, relata o diretor.
Em outro momento, apesar de já ocupar o lugar onde hoje se encontra, por motivos de reforma entre os anos de 1992 e 1994, ela também ocupou a área onde hoje o está Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), na Avenida Ernestino Borges, entre as Ruas Odilardo Silva e Eliezer Levy. Desde 1971, em razão do aumento do acervo e da necessidade de mais espaço, a BP ocupa hoje o lugar que lhe é cativo e, graças a Lei nº 0269 de 12 de junho de 1996, recebeu o nome de uma professora, nada mais apropriado. Principalmente se levarmos em consideração que ambas, a BP e a professora, têm em comum a data de nascimento: 20 de abril de 1945.
Apesar de se encontrar em obras desde fevereiro de 2022, o momento representa uma conquista para o efetivo, como assegura José Pastana: “quando eu fui convidado para ser diretor da biblioteca em 2017, o Paulo [Tarso Barros] é testemunha disso, a biblioteca estava quase pra fechar, porque a situação precária da parte elétrica, parte hidráulica, prédio, servidores... Então o pessoal aqui trabalhava uma semana e folgava duas, não era, Paulo? Por conta dessas precariedades do prédio”.
As dificuldades estruturais relacionadas a goteiras, infiltrações e vazamentos eram crônicas já se arrastavam por décadas sem terem sido resolvidas por obras e intervenções anteriores. Outros aspectos também levantados pelo diretor envolvem questões elétricas, como falta de manutenção da fiação e o uso de métodos não convencionais para a condução e distribuição da energia; e também problemas na captação e distribuição de água pelo sistema de bombeamento de injeção hidráulica da biblioteca, questões essas resolvidas, diversas vezes, por meio de patrocínio externo ou mesmo por meio de contribuição dos próprios servidores do local.
Segundo o diretor, “para a biblioteca se manter, nós temos, geralmente são os Amigos da Biblioteca que estão aqui, o pessoal da terceira idade, a maioria são aposentados, professores, escritores, artistas. Geralmente eles ajudam com alguma coisa. Funcionários, principalmente, além da ajuda de alguns “anjos”. Sobre isso, ele acrescenta: “poxa, bora fazer uma coleta pra comprar uma lâmpada, pra mandar consertar alguma coisa, é dessa maneira que funciona. Basicamente em todas as secretarias, se não tirar do bolso, a coisa desanda. Porque nós não temos recursos para manter a biblioteca, pra manutenção do prédio”.
Anteriormente gerenciada pela Secretaria de Estado de Educação (SEED), de onde recebia apoio, utensílios e mão de obra devidamente treinada e qualificada para atuar nas ações pedagógicas empreendidas no interior da instituição, aquela continua como principal mantenedora da biblioteca, mesmo após a assunção da BP pela Secretaria de Estado de Cultura (Secult), em razão do Sistema Nacional de Cultura, afirma Paulo Tarso Barros.
Até antes da reforma, a BP acumula mais de 60 mil itens, distribuídos entre livros, jornais, revistas, cd’s, dvd’s e vhs’s; mantia 13 seções organizadas como: ensino fundamental, infanto-juvenil, acesso à internet, auditório multiuso, sala Elcy Lacerda, sala Afro-indígena, sala do ensino médio e superior, sala Amapaense, sala de Periódicos, sala de Obras Raras (jornais antigos do Amapá), sala de braile e audioteca, sala Circulante e Galeria Alcy Araújo.
Ela também gerenciava mais de 15 projetos culturais e de incentivo à leitura voltados para a comunidade em geral, além de abrigar a Associação Amapaense do Folclore e Cultura Popular. Tudo isso sem contar com a realização de saraus, exposições e oficinas de arte, contação de histórias, eventos otaku, de RPG, HQ’s, oficinas de xadrez, bem como as parcerias que ocorriam com colaboradores, como é o caso do professor Dr. Ivan Carlos (Gian Danton), por meio do congresso Aspas Norte, que realiza e fomenta pesquisas sobre quadrinhos, grafic novels e afins, entre outras atividades.
Para José Pastana, essa postura adotada pela BP representa uma quebra de paradigmas. “A gente inovou, deu um outro ressignificado pra biblioteca. Nós não trabalhamos só com o acondicionamento de livro, com pesquisa, com empréstimo de livro. A gente começou a desenvolver os projetos aqui e também tornou a biblioteca um espaço de convivência e vivência, encontro”, finaliza.
Para Alessandro, a BP é “um lugar de cultura, de amizade e principalmente de conhecimento”. Para Wilza, a biblioteca “representa conhecimento, amizade, um espaço saudável para todos”. Ela ainda completa: “um lugar que merece ser estimulado e frequentado pelos pais e professores, que representa e guarda um pouco da nossa cultura. Sem dúvida que deve ser valorizada por todos nós”. Para mim, a BP significa a porta de entrada para vários mundos, onde presente, passado e futuro se misturam e coexistem em um maremoto de experiências, lembranças e saberes para o deleite de todos e qualquer um.
*Reportagem produzida na disciplina de Redação e Reportagem III ministrada pelo professor Alan Milhomem.
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