top of page

Biobijus do Quilombo: mulheres negras empreendem transformando resíduos em renda

  • Foto do escritor: AGCom
    AGCom
  • 8 de jun.
  • 4 min de leitura

Em São José do Matapi, mulheres quilombolas transformam sementes, escamas de peixe e fibras naturais em biojoias, unindo tradição, sustentabilidade e empreendedorismo.


Por Paulo Gama e Raila Souza

Coletivo das artesãs do quilombo São José do Matapi. Foto: Raila Souza.
Coletivo das artesãs do quilombo São José do Matapi. Foto: Raila Souza.

Era com os pés no barro e as mãos na terra que as mulheres do quilombo São José do Matapi, localizado a 32 quilômetros do centro de Macapá, capital do estado do Amapá, construíam o sustento de suas famílias. A agricultura, passada de geração em geração, continua viva na roça da mandioca, na produção da farinha e na colheita do açaí. Mas nos últimos anos, um novo ofício começou a nascer: a biobijus.


Feitas com sementes, fibras, escamas e algumas bijuterias, as peças artesanais surgem daquilo que normalmente seria descartado. Um olhar apurado e afetivo transforma esses materiais em brincos, pulseiras e colares que carregam identidade, história e moda. E é com esses acessórios que mulheres negras quilombolas, muitas vezes marginalizadas, começam a mudar suas vidas.


“Foi em 2016 que tudo começou”, conta Maria das Dores Silva de Jesus, uma das primeiras moradoras a participar do curso de artesão de biojoias, na Escola Estadual de Pesca (CIFPA). “Eu e minha prima fizemos a primeira capacitação. Depois, com apoio, trouxemos para dentro da comunidade. Hoje somos mais de 25 mulheres envolvidas com isso”.


Primeira turma do curso de artesão em biojoias fazendo a retirada da escama do peixe. Foto: Acervo da CIFPA.
Primeira turma do curso de artesão em biojoias fazendo a retirada da escama do peixe. Foto: Acervo da CIFPA.

A formação que acendeu uma nova possibilidade


A mudança na vida das mulheres do quilombo São José do Matapi começou com uma oficina. Em 2016, a Escola Estadual de Pesca ofertou, pela primeira vez, o curso de artesão em biojoias, inicialmente com apenas duas alunas da comunidade. Hoje, a capacitação já alcançou dezenas de mulheres e se tornou referência em práticas sustentáveis.


“Primeiro, fizemos a oficina na própria comunidade. Depois, trouxemos algumas alunas para cá, para a escola. E o curso foi crescendo”, explica a professora Eliane Matias da CIFPA. O que começou como uma oficina básica, tornou-se uma qualificação profissional com foco em biojoias, curtimento de couro e até matemática financeira para precificação dos produtos.


A proposta da formação não se limita ao ensino técnico. Ela parte da premissa de que o reaproveitamento de resíduos pode ser, além de ecológico, uma forma de geração de renda e independência. “A gente mostra que aquilo que seria descartado — a escama, o couro, a fibra — pode ser transformado em peças lindas. O que iria para o lixo, vira valor”, afirma a professora.

Professora Eliana Matias. Foto: Raila Souza.
Professora Eliana Matias. Foto: Raila Souza.

Além disso, a escola atua como espaço de incentivo ao empreendedorismo sustentável, especialmente para mulheres em situação de vulnerabilidade.


“Muitas mulheres dizem que não podem sair de casa porque têm filhos ou não têm emprego fixo. A gente mostra que elas podem aprender a beneficiar escamas em casa, divulgar nas redes sociais e criar sua renda. É abrir uma janela para o mundo do trabalho”, defende Matias.


Os resultados aparecem não só nas feiras, mas na mudança de postura das alunas. “Elas começam a se valorizar, a entender o que é o tempo, o custo, o esforço. Aprendem a precificar o próprio trabalho e perceber que aquilo que vêm da terra tem valor — e muito”, conclui Eliane.


Rossilda de Jesus, mãe e empreendedora.Foto: Raila Souza.
Rossilda de Jesus, mãe e empreendedora.Foto: Raila Souza.

Mulheres negras, mães e empreendedoras


A maioria das participantes do coletivo é formada por mães solo, agricultoras ou mulheres que conciliam múltiplas tarefas no dia a dia. Rossilda de Jesus Lemos, por exemplo, divide o tempo entre cuidar da filha pequena, estudar e produzir biojoias. “Às vezes a gente trabalha na roça pela manhã e, quando dá, à tarde senta para fazer as peças. Com a ajuda da minha família, consigo estudar à noite. Faço [curso] técnico em floresta, mas não largo a biojoia. É algo que me faz bem”, conta.


Segundo a artesã, o trabalho também foi uma forma de vencer barreiras pessoais. “Eu era muito tímida, tinha vergonha de me expor. Depois que começamos a vender, a participar de feiras, a falar com as pessoas, ganhei mais segurança. Hoje me sinto empreendedora”, afirma.


Empreender sem agredir: bioeconomia e sustentabilidade na prática

A maior parte da matéria-prima utilizada pelas artesãs é extraída de recursos naturais da região do Matapi, que leva o mesmo nome do rio que banha três municípios amapaenses (Macapá, Mazagão e Santana).


“Nós usamos o que a natureza nos dá. A semente que cai do açaí, as fibras das bananeiras... A escama do peixe, que seria lixo, a gente trata e transforma em brinco. É bonito e ecológico. A gente não agride o meio ambiente”, explica Maria das Dores.


A maioria dos materiais vem da própria comunidade. O que não é possível beneficiar por falta de estrutura, elas compram. “Tem muita semente aqui, mas a gente ainda não tem como polir, lixar, tratar. Aí temos que comprar. Se tivéssemos máquinas, faríamos tudo daqui”.

“É uma luta, mas hoje a gente tem outra fonte de renda. Isso ajuda muito ", reforça Maria das Dores. Foto: Raila Souza.
“É uma luta, mas hoje a gente tem outra fonte de renda. Isso ajuda muito ", reforça Maria das Dores. Foto: Raila Souza.

Da feira ao futuro: visibilidade, renda e dignidade


O grupo participa de feiras de artesanato nos municípios amapaenses de Macapá e Santana, muitas vezes por conta própria, sem apoio institucional. O que conseguem vender é revertido em parte para o grupo e parte para as famílias.


“Quando alguém compra e elogia nosso trabalho, a gente se sente valorizada. Dá vontade de continuar, de melhorar. E também ajuda com a renda. É uma renda complementar, mas já é uma ajuda importante”, explica Rossilda.


Mais do que uma fonte de renda, o projeto é uma ponte entre o passado e o futuro: mantém viva a cultura quilombola e ensina às novas gerações que é possível resistir

criando.


“Minhas filhas já observam. Quando a gente está fazendo, elas estão ali, querendo aprender. E aprendem. É assim que a gente vai passando: de mãe para filha, de avó para neta”, conta Maria das Dores

Couro do peixe. Foto: Raila Souza.
Couro do peixe. Foto: Raila Souza.

Ser mulher negra, quilombola e empreendedora!


A pergunta que move a reportagem é: o que significa empreender a partir de um lugar invisibilizado pelo poder público, pela mídia e com pouco acesso a incentivos econômicos?


Para Maria das Dores, a resposta é clara: “É luta. Para mulher negra e quilombola tudo é mais difícil. Mas a gente está conseguindo. A gente está entrando nos espaços, ganhando respeito. E mostrando que o que fazemos é importante. É arte, é cultura, é renda e é resistência”.


Comments


WhatsApp Image 2022-05-15 at 14.41.58 (1).jpeg
  • Branca ícone do YouTube
  • Branco Facebook Ícone
  • Branco Twitter Ícone
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page