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Violência política de gênero é obstáculo para maior participação feminina na política de Macapá

Foto do escritor: AGComAGCom

O cenário político nacional em comparativo com a experiência de quatro candidatas nas eleições municipais da capital amapaense em 2024.


Por Paulo Rafael


Macapá (AP) - A violência política de gênero no Brasil abrange uma série de práticas destinadas a intimidar, deslegitimar ou silenciar mulheres em contextos políticos, com o objetivo de restringir sua participação nos processos eleitorais e democráticos. As formas dessa violência são diversas, vão desde assédios e ameaças até agressões físicas, atentados contra a vida e difamações. Mesmo com os avanços das últimas décadas, as mulheres continuam sendo sistematicamente afastadas da política, o que resulta em uma representação insuficiente e sem diversidade no cenário político nacional.


Em 2024, o Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) revelou que 102 candidatas foram vítimas de algum tipo de violência entre o início das campanhas e o final do segundo turno nas últimas eleições. A sub-representação feminina persiste, com a figura da mulher sendo fortemente combatida de maneira estrutural no sistema político do país, onde o machismo ainda impede a sua plena participação política. O Senado Federal aponta que das mais de cinco mil cidades brasileiras, apenas 13% terão mulheres como prefeitas em 2025, mesmo considerando que, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), divulgados através do TSE Mulheres, as mulheres representaram 52% (81.806.914) do eleitorado brasileiro em 2024, ano no qual apenas 18% das 159.005 candidatas conseguiram se eleger.


Além dos ataques diretos, a violência política de gênero também tem um efeito dissuasório, afastando muitas mulheres do processo eleitoral. O medo de represálias faz com que muitas desistam de suas candidaturas ou se sintam desencorajadas a participar da política. Quando esses ataques vêm a público, assustam por seu caráter comumente perverso, não apenas contra as candidatas e eleitas, mas também contra as pessoas envolvidas nas campanhas e nos movimentos sociais. A violência, portanto, vai além das agressões físicas e se estende a ameaças e ataques virtuais, que contribuem para o fortalecimento de um ambiente político hostil.


Casos de violência política de gênero com repercussão nacional


O assassinato de Marielle Franco, em 14 de março de 2018, trouxe à tona de forma trágica o impacto da violência política de gênero no Brasil. A vereadora do Rio de Janeiro foi assassinada enquanto exercia seu mandato, em um ato de extrema violência que destacou o risco que mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+ enfrentam ao se envolverem com a política. A morte de Marielle gerou um movimento nacional por justiça e levantou discussões sobre o cerceamento de figuras femininas em atividades democráticas, uma realidade que, até então, era frequentemente ignorada ou minimizada. Em outubro de 2024, o julgamento dos assassinos de Marielle resultou na condenação de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, mas a luta por justiça para Marielle continua a simbolizar a resistência contra a violência política no país.


Marielle não foi a única. Casos recentes como os de Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Carol Dartora (PT-PR) evidenciam a persistência dessa violência. Em 2024, a deputada federal Talíria recebeu ameaças de morte em sua campanha para prefeita de Niterói, com um e-mail cruel que a ameaçava dizendo “Sua macaca fedorenta, a milícia tem que te colocar no caixão. Se você não renunciar ao seu mandato de deputada e à sua candidatura a prefeita de Niterói e abandonar a política, eu vou te matar’’. Enquanto Carol Dartora, a primeira deputada federal negra eleita pelo Paraná, relatou ter recebido 43 ataques racistas e ameaças de morte em apenas 15 dias.


Esse tipo de violência não se limita a ataques direcionados apenas à mulher; ele se combina com outras opressões, como o racismo e a LGBTfobia, intensificando o sofrimento das vítimas. Outras mulheres eleitas, como Erika Hilton (PSOL-SP), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Benny Briolly (PSOL-RJ), Duda Salabert (PDT-MG), Sônia Guajajara (PSOL-SP) e Daiana Santos (PCdoB-RS), também vieram a público para expor os ataques que sofreram. Todos registram algo em comum: as agressões, em geral, associam a mulheridade à outras pautas, ou seja, dificilmente atacam apenas por ser mulher, somatizam, também, outras partes de sua identidade.


Kimberlé Crenshaw é advogada, professora, pesquisadora dos direitos humanos e fundadora do Centro de Interseccionalidade e Estudos de Política Social da Columbia Law School. Através de seus estudos, Crenshaw busca entender como as múltiplas formas de opressão — gênero, raça, classe e sexualidade — se entrelaçam e moldam as experiências de violência. Em seu artigo "Mapeando as margens: interseccionalidade, identidade política e violência contra mulheres de cor", Crenshaw afirma: "A análise interseccional revela como as experiências de violência são moldadas pela combinação de gênero, raça, classe e sexualidade, mostrando que não se pode entender a opressão de forma isolada’’. Ou seja, quando pensamos em proteção para mulheres na política brasileira, é preciso ir além da questão de gênero.


Macapá no mapa da violência de gênero


Em Macapá, capital do Amapá, não é diferente. Para entender a situação em que se encontra o município no combate à violência política de gênero, e com a finalidade de situar o estado no cenário nacional dentro da pauta, esta reportagem conversou com quatro candidatas a vereança de Macapá nas eleições de 2024, sendo elas: Fleur Duarte (REDE-AP), Eduarda Costa (SOLIDARIEDADE-AP), Yasmyn Bentes (REDE-AP), e Ana Cristina Soares (PT-AP) - esta última, responde também enquanto doutora e pesquisadora em gênero e participação política das mulheres. Foram entrevistados, também, a presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amapá (Cedimap), Alzira Nogueira, e o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP), João Lages.


Registro de Fleur Duarte na Universidade Federal do Amapá. Foto: Paulo Rafael, 2024.
Registro de Fleur Duarte na Universidade Federal do Amapá. Foto: Paulo Rafael, 2024.

Fleur Duarte é ativista dos direitos humanos e educadora popular; em sua primeira disputa para ocupar o legislativo municipal, ela foi vítima de ataques severos, desde microagressões em espaços de decisão, até piadas grotescas na internet. Ela cita, em entrevista, que o fato de o Brasil estar, por 15 anos consecutivos, liderando como o país que mais mata pessoas trans e travestis, fortalece essa estrutura excludente, que dificulta a participação de grupos minorizados na política institucional.


Fleur foi a primeira mulher trans/travesti a ser homenageada pelo TRE-AP com o título de “mulher protagonista de destaque na luta dos direitos humanos”. Após trilhar seu caminho no ativismo social, foi convidada pelo partido Rede Sustentabilidade (Rede) para lançar uma candidatura, e diz que a ideia de adentrar a política institucional surgiu quando deu sua primeira entrevista, para o portal de notícias G1: ”Quando eles me chamaram, eu entendi que poderia fazer algo a mais. Eu pensei assim: se o G1 está me percebendo, então todo o estado do Amapá pode me perceber como um corpo político, mas não um corpo político qualquer, e sim com responsabilidade e credibilidade na pauta da justiça social e dos movimentos sociais”.


A ativista de 32 anos conta que as suas vivências serviram de motivação para concorrer ao cargo no legislativo: ”Eu fui expulsa de casa, sofri muitos ataques na internet, com apologias à minha morte, principalmente por defender os direitos das pessoas”. Em meio às lágrimas, ela conta que as pessoas não imaginam o que ela passou para chegar até aqui: ”As pessoas sempre olham a Fleur Duarte, ativista, forte, bem arrumada: isso é uma capa”, e explica que tanto a aparência quanto o conteúdo são importantes para pessoas como ela: ”obviamente, eu gosto de me vestir assim. As muheres trans e travestis não precisam estar sempre marginalizadas ou na prostituição, ou ser sempre aquela mulher mal vestida que não pode estar nos espaços de poder”.


Em junho de 2024, após o lançamento de sua pré-candidatura, Fleur Duarte foi vítima de violência política de gênero. Através da rede social X (antigo Twitter), um apoiador declarado do prefeito de Macapá, Antônio Furlan, atacou a identidade de gênero de Fleur e fez apologia a sua morte. Na mensagem, já removida pelo autor, ele compartilhou uma manchete homofóbica que dizia “carro capota com 4 pessoas e um gay”, e comentou “algúem sabe se a Fleur tá bem?”.


Fleur descreve este episódio como um reforço para continuar lutando, mas diz: “Qualquer tipo de agressão atravessa a nossa alma, nossa existência, então a gente reflete porque isso não deve mais acontecer’’. O partido Rede Sustentabilidade se pronunciou sobre o ocorrido assim como diversos nomes de relevância no cenário político regional, no entanto, não houve judicialização do caso. A então pré-candidata explica que o agressor foi notificado, mas não houve continuidade no processo: “Não teve um parecer do Ministério Público, que era o que eu queria, só teve uma justificativa pública na rede social da pessoa’’.


Com o resultado de 378 votos e o título de vereadora suplente, ela afirma, ainda, que é crucial ocupar os espaços políticos: “Esse lugar me pertence, e pertence a muitas outras pessoas como eu, e não falo só de mulheres trans e travestis, mas pessoas estruturalmente excluídas da sociedade, que envolve pessoas LGBTQIAPN+, pessoas pretas, pessoas com deficiência, e tantas outras’’. Para a ativista, é importante ressaltar que a falta de acesso à educação gera barreiras: “O sistema educacional faz com que a gente não chegue nesses espaços de poder. Ele foi criado por pessoas brancas, elitistas, hegemônicas e conservadoras, e tudo que não está integrado a este tipo de conceito, não serve, incluindo a gente’’.


A assistente social e presidenta do Cedimap, Alzira Nogueira, fala sobre os entraves para a judicialização de casos de violência política de gênero no Amapá, como o sofrido por Fleur: “O conselho ainda não dispõe dessas ferramentas instituídas para recepcionar denúncias e dar encaminhamento às questões relativas a este tema, mas essa preocupação está contida no segundo plano estadual de políticas públicas para as mulheres, e deve ser divulgado já no próximo período’’.


Eleição do atual Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amapá - Alzira Nogueira no centro da foto de blusa lilás e calça verde. Foto: Aog Rocha, Governo do Estado do Amapá, 2024.
Eleição do atual Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amapá - Alzira Nogueira no centro da foto de blusa lilás e calça verde. Foto: Aog Rocha, Governo do Estado do Amapá, 2024.

A conselheira aponta que é uma pauta importante: “Essa problemática permeia todo o debate político dentro do conselho, porque ela é central no ponto de vista da ruptura da violência patriarcal e da própria constituição da democracia na sociedade brasileira’’. Quando perguntada sobre as ações que o conselho realiza perante casos de violência política de gênero, ela diz: “O conselho tem assumido como estratégia fazer o debate, informativo e crítico, com a sociedade, implicando na educação política para o reconhecimento da importância desta pauta, e também os processos de denúncia social a cada vez que essas questões vêm à tona’’.


O Amapá está inserido em uma realidade regional cruel. Com poucos dados sobre violência política, é necessário entender em qual contexto vivem as mulheres do Norte do país: após atualização em 2023, o Mapa Nacional da Violência de Gênero, aponta que 57% das mulheres nortistas já sofreram algum tipo de violência doméstica e não denunciaram. O estudo do Senado Federal aponta ainda, que, no Amapá, 41% das vítimas passam pela primeira agressão com até 19 anos. O Ministério Público do Amapá, através do relatório estatístico da violência doméstica contra mulheres no estado, divulgou em maio de 2023, que foram registrados 2,3 mil casos, com 55% das ocorrências em Macapá.


As políticas públicas caminham a passos lentos. A esfera política se torna inacessível para mulheres que precisam, primeiramente, lutar pela própria sobrevivência; mas existe resistência por parte do movimento de mulheres e novas estratégias vêm sendo desenvolvidas para solucionar essa problemática. A ideia é construir um ambiente que possibilite candidaturas e representações femininas.


Alzira Nogueira também é professora, ativista do movimento negro e de mulheres, presidenta da Central Única das Favelas do Amapá (Cufa-AP) e foi candidata a deputada estadual nas eleições de 2022, ela acredita que “é preciso um trabalho de empoderamento das lideranças’’.


Comenta que conhece muitas mulheres que poderiam concorrer em períodos eleitorais e são impedidas por obstáculos sociais: “A violência incide sobre os nossos corpos de uma forma tão perversa que não nos permite ver a nossa potência’’.


A professora enxerga um atraso na representatividade feminina no processo eleitoral de 2024 em Macapá: “Eu não considero que as eleições municipais foram mais inclusivas. Acredito, inclusive, que no Brasil está se refinando um modelo de sistema eleitoral que é cada vez mais excludente’’, ela compara, contudo, com melhorias na legislação: “Se você toma a legislação, a violência política contra pessoas negras, mulheres e LGBTQIAPN+ é configurada como crime, isso é um avanço’’.


Em Macapá, após as últimas eleições para o legislativo, a câmara dos vereadores tem 6 mulheres eleitas, dentre suas 23 vagas, com apenas duas a mais do que nas eleições de 2020, mantendo a baixa participação feminina. No executivo, Macapá nunca teve uma representação feminina. Sobre isso, Alzira comenta: “A gente vê a pequena representatividade feminina, e a completa ausência de mulheres negras. É um processo tácito, são práticas arraigadas’’. Sobre a própria experiência na corrida por uma vaga no legislativo estadual do Amapá, a ativista cita Gonzaguinha para explicar que, apesar das dores, se sentiu feliz por ser útil à sua comunidade: “Minha candidatura foi muito bonita, foi uma candidatura-movimento que nasceu de um debate coletivo, de pessoas que sentiam a necessidade de termos uma representação’’. Apesar de orgulhosa, ela ressalta que a violência deixa marcas: “Eu acho que ainda não me recuperei das violências que sofri, e eu acho que a primeira violência é o reflexo da cultura política que constrói uma narrativa, em conjunto de práticas, para reafirmar que esse lugar não é para nós’’.


Recursos e incentivos financeiros


O fundo eleitoral é um mecanismo criado para financiar as campanhas eleitorais no Brasil, com o objetivo assegurar condições financeiras para que candidatos possam disputar de forma justa e igualitária. Em cada eleição, os partidos políticos recebem uma parcela desse fundo para cobrir as despesas de suas campanhas, como produção de material publicitário, transporte, salários de equipes e outros custos administrativos. Embora a lei exija que os recursos sejam distribuídos entre as candidaturas de forma proporcional, na prática, as mulheres enfrentam desafios significativos devido à disparidade de financiamento. Em geral, os partidos tendem a priorizar as campanhas de homens, especialmente nas disputas mais competitivas.


A disparidade de recursos pode ser proposital, mas, geralmente, é estrutural. Um candidato que já se elegeu, que possui trajetória política, sempre será priorizado pelo partido, afinal, é mais conhecido e possui mais chances de receber uma grande quantidade de votos. Considerando que, historicamente, mais homens ocupam cargos políticos, as mulheres sempre estarão em desvantagem, sendo deixadas de lado nas decisões de investimento financeiro. A legislação exige que os partidos garantam uma parcela dos recursos destinada exclusivamente para mulheres, mas o que deveria ser regra, acaba sendo escolha: a Lei 9.504/1997, conhecida como "Lei das Eleições", demanda cota mínima de 30% para candidaturas femininas, mesmo assim, dados do Observatório Nacional da Mulher na Política apontam que as fraudes são frequentes, com mais de 700 cidades brasileiras descumprindo a cota nas eleições municipais de 2024.


Além disso, o descumprimento da Lei das Eleições foi tema de um debate recente na Câmara dos Deputados, com a proposta da “PEC da Anistia’’, que visa anular as penalidades impostas a partidos que não cumpriram a cota mínima nas eleições de 2022. Embora tenha sido aprovada, a proposta ainda está em trâmite, evidenciando a resistência a políticas que buscam garantir a reparação. A luta contra a violência política de gênero, portanto, é uma batalha contínua e essencial para a construção de uma democracia mais justa e igualitária no Brasil.


Plenário da câmara federal dos deputados. Foto: Brenno Carvalho, 2024.
Plenário da câmara federal dos deputados. Foto: Brenno Carvalho, 2024.

Em 2020, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revelou que as mulheres candidatas a prefeitas e vereadoras receberam, em média, 60% do valor destinado aos homens, o que torna a disputa mais desleal. Esse desequilíbrio no financiamento não só prejudica a competitividade das candidaturas femininas, mas também reflete a falta de comprometimento real por parte dos partidos políticos em promover a igualdade de gênero e enfrentar a violência política que impede a plena participação das mulheres nos espaços de decisão.


“Falar sobre orçamento é sempre uma ferida muito grande, que com certeza entra na pauta da violência política de gênero. Eu sinto que o que impede esse debate de acontecer é a falta de coragem da gente em dizer a verdade. Independentemente de partido, seja o meu partido ou outro, seja de esquerda ou direita, todo partido tem sua prioridade, e na minha primeira vez como candidata, o orçamento não seria o mesmo que o de um candidato à reeleição’’, diz Yasmyn Bentes, ativista do movimento negro e feminista, estudante de jornalismo da Unifap e candidata a vereadora nas eleições municipais de 2024. “O partido, para parecer ‘bonitinho’ perante a justiça eleitoral, ele vai te passar um valor. Eu recebi um valor X, um candidato do meu partido, por exemplo, recebeu cerca de 150 mil, agora, quanto esse candidato recebeu por fora?’’ declara a estudante.


Registro de Yasmyn Bentes. Foto: Martha Sophia, 2024.
Registro de Yasmyn Bentes. Foto: Martha Sophia, 2024.

Com exceção de recursos advindos de empresas, pessoas físicas e jurídicas são autorizadas, pela legislação, a doar valores em prol de auxiliar campanhas. As regras do Fundo eleitoral determinam, no entanto, que o valor máximo de doação individual por candidato não pode ultrapassar 10% da renda bruta do doador no ano anterior à eleição, e devem ser declaradas à justiça eleitoral. Essas contribuições externas permitem que certos candidatos gastem milhões de reais em um único período eleitoral, Yasmyn comenta que competir com quem já tem relações de poder afirmadas é praticamente impossível: “Um vereador que não foi reeleito, por exemplo, gastou dois milhões de reais, então como é que a Yasmyn, com 22 anos de idade, vindo pela primeira vez como candidata e recebendo bem menos recurso, vai conseguir competir com um candidato que já está há tantos anos em um mandato e tem o apoio declarado do partido? A gente está muito longe de conseguir alguma paridade’’.


Com trajetória no movimento estudantil, Bentes recebeu 295 votos e diz que não pretende retornar à disputa eleitoral tão cedo, ela afirma que a divisão entre pessoas que possuem a mesma visão que ela é uma dos principais fatores para isso, e diz “Eu tenho muita dificuldade em me ver na política institucional de novo, tenho muitas dores com relação ao movimento social, não sei como vou ficar futuramente e penso sim em me afastar de tudo’’. A entrevista da jovem marcou esta reportagem com relatos extremamente dolorosos, nos quais ela narra episódios de assédios, exclusões e invalidações. Ela alega que foi muito atacada nas redes sociais, mas não conseguiu levar à justiça: “Nós, que estamos aqui na base, não temos condições de enfrentar um processo judicial contra uma violência sofrida em redes sociais. Dos ataques que eu sofri, a maioria dizia coisas como ‘sai daí, mais uma mulherzinha doida que ninguém conhece’, ‘vai lavar louça’, ‘tu não vai ganhar nada’, ‘uma perturbada’, era esse tipo de comentário que eu recebia, e gosto de frisar: vindos, em sua maioria, de homens jovens’’.


Sobre uma situação, Yasmyn faz um relato que prova a necessidade de uma atenção transversal no combate ao preconceito, compreendendo que mulheres negras, por exemplo, podem ser duplamente agredidas em um único episódio: “Eu estava participando de um evento, ainda enquanto pré-candidata, e uma pessoa me abraçou, de uma maneira que eu não permiti que ela me abraçasse, me pegou pelo rosto e falou ‘nossa, você é uma negra muito bonita’. Isso é muito ruim. Você sente um nojo, até de si mesma’’. Ela diz, ainda, que precisamos nos atentar à estrutura, para além das ações promovidas por homens: “Essa violência não vem só de homens. Muitas mulheres dão continuidade, porque acabam tendo acesso ao poder, mas querem ser as únicas: aquela síndrome do primeiro’’.


A falta de recursos e as agressões são reclamações comuns entre as candidatas. Todas as entrevistadas foram pontuais sobre isso. A professora Ana Cristina Soares, que foi candidata a vereadora nas últimas eleições municipais, recebeu 367 votos e tem um posicionamento forte com relação ao que sofreu: “Eu sofri muita violência política nesta eleição. Fui ridicularizada, desacreditada e, em algumas situações, até impedida de falar. Isso sendo uma mulher cis, branca e professora universitária; imagino a situação de mulheres com mais marcadores sociais’’. Enquanto especialista na área, ela comenta que a violência de gênero é mais forte na Amazônia, onde dados do Instituto Igarapé, divulgados em 2024, apontam que a taxa de homicídio de mulheres superou a média nacional, com 48%. Sobre isso, ela diz: “o Amapá segue essa lógica, e por isso precisamos ocupar os espaços de decisão e verificar se essas mulheres eleitas estão levantando as bandeiras feministas, que questionam o status quo dessa sociedade patriarcal, ou só estão contribuindo para defender o papel de submissão aos homens’’.


Registro de Ana Cristina durante o lançamento de sua pré-candidatura. Foto: Gabrielle Furtado, 2024.
Registro de Ana Cristina durante o lançamento de sua pré-candidatura. Foto: Gabrielle Furtado, 2024.

Ana é militante do Partido dos Trabalhadores (PT), doutora em ciências sociais, professora da Unifap e ocupou o cargo de vice-reitora da instituição. Ela endossa que é necessário pensar em um sistema que traga equidade na disputa: “Há uma luta árdua dentro dos partidos por parte das mulheres (principalmente de esquerda) para que as candidaturas femininas sejam prioridade, porém, há companheiros que tentam desmoralizar e invalidar a forma de fazer política das mulheres, com discursos misóginos e preconceituosos’’, e, para o futuro, se mostra determinada: “Nós temos que continuar ousando e lançando cada vez mais mulheres na política, mulheres em toda a sua diversidade (trans, negras, indígenas, assentadas, entre outras), para romper com a lógica tradicional de que a política é um lugar para homens brancos, ricos e de meia idade’’.


A estrutura de privilégios que é estabelecida na realidade brasileira faz com que uma parcela das candidatas consigam se recuperar de ataques pontuais, mas os obstáculos colocados no caminho em direção a um país igualitário são marcas que atrasam e dificultam a vida de todas. Desde a conquista do voto feminino, em 1932, até a posse de Dilma Rousseff, primeira presidenta da história, em 2011, a batalha por voz ativa foi custosa, mas por muitas vezes, vitoriosa. Este ano registra um fato histórico: segundo o TSE, 34,7% das candidaturas são de mulheres, marcando a maior proporção desde os anos 2000. O avanço é positivo, mas mudanças efetivas ainda são necessárias, afinal, a parcela de eleitoras (que representam maioria) ainda não reflete nos poderes executivos e legislativos, principalmente se avaliarmos que, segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em dados divulgados pela Rádio Senado já em 2024, para dez candidatas brancas, somente uma conseguiu ocupar o cargo para o qual concorreu, enquanto para candidatas negras, a proporção foi de uma a cada 26.


Eduarda Costa é conselheira de juventude e vice-presidenta do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Enquanto uma mulher negra e LGBTQIAPN+ de 23 anos, ela começou a se interessar por política aos 18, e conta que enxerga política como tudo que a gente vive, desde as necessidades básicas (alimentação, saúde e emprego), até a compreensão da realidade individual de cada pessoa. Em 2024, ela decidiu pleitear uma candidatura à vereança e diz que não fez uma campanha igual ao que é visto no espaço legislativo municipal: “Eu entendi que a minha política não precisava ser baseada na câmara municipal de Macapá, a minha política pública poderia estar em todo lugar, eu poderia estar fazendo ações sociais, abraçando as pessoas. Eu sigo muito essa questão da humildade no coração, porque as pessoas são assim: querem falar, querem desabafar’’. Sonhadora, ela diz que se inspira em uma princesa, mas não qualquer princesa: “Eu tenho como inspiração a princesa Diana, inclusive guardo uma das frases dela que diz ‘eu prefiro ser rainha no coração das pessoas, do que viver numa realidade falsa’’.


Registro de Eduarda Costa na aprovação de seu nome para pré-candidatura. Foto: arquivo pessoal, 2024.
Registro de Eduarda Costa na aprovação de seu nome para pré-candidatura. Foto: arquivo pessoal, 2024.

Eduarda, diferente das demais entrevistadas, aponta que não precisou enfrentar casos de violência direta contra sua pessoa: “Durante a campanha não passei por nenhum momento de violência, por ser uma mulher trans, não tive nenhum impedimento. Recebi muito carinho da população’’. Por outro lado, ela diz que seria ideal receber mais recursos para sua campanha: “Acredito que a minha candidatura não teve muito apoio, não tivemos esse momento de ‘estou com você’. Como eu falo, nós temos pessoas que acreditam em um sonho, e não pessoas para trabalhar de graça’’. A conselheira do estado recebeu 75 votos e pontua que seguirá firme em defesa das pautas que acredita, rumo a transformação social.


O Brasil precisa romper com a lógica tradicional que ainda coloca os homens como protagonistas e as mulheres como coadjuvantes, em um processo de representação política onde a igualdade de gênero se torna uma questão de justiça, não apenas de direitos. A jornada de figuras como Eduarda Costa, que busca transformar a política de dentro e fora das instituições, demonstra que, apesar dos obstáculos, a mudança é possível e necessária. A luta pela equidade e pela erradicação da violência política de gênero deve ser contínua, para que, um dia, a política no Brasil reflita verdadeiramente a diversidade e a pluralidade de sua população.


Como se posiciona a justiça amapaense?


Em entrevista, o desembargador João Lages traz uma série de ações promovidas pelo judiciário para cessar a violência contra as mulheres na política amapaense. Sobre o que tem sido feito, ele lista: “Trabalhamos o aperfeiçoamento de magistrados, fortalecemos a rede de atendimento de combate à violência contra mulher, realizamos campanhas educativas, e capacitações com palestras e painéis sobre violência política de gênero’’. Ele cita a criação da Comissão de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Moral, Assédio Sexual e da Discriminação, da Comissão de Participação Feminina e implantação da Ouvidoria da Mulher como avanços. Já sobre as poucas ações judiciais tomadas pelas vítimas, o desembargador comenta: “Falta de informações adequadas de seus direitos ou mesmo de como exigi-los perante o judiciário. Outro fator, em minha opinião, é o medo de sofrerem algum tipo de preconceito, de exposição, que as faz recuar ao invés de perseguirem as devidas reparações’’.


Por outro lado, ele aponta a baixa adesão às campanhas de informação sobre o tema: “Como gestor do TRE/AP noto que a sociedade em geral, inclusive mulheres, as mais prejudicadas, não se interessam pelas ações e cursos que promovemos, não comparecem na quantidade que gostaríamos que comparecessem e veja que há muito tempo vimos combatendo essa questão de desigualdade e graças a atuação da Justiça Eleitoral hoje em dia partidos políticos dão mais atenção à pauta, especialmente por ver que mandatos estão sendo cassados por conta de fraude de gênero, multas estão sendo aplicadas por causa da desigualdade da distribuição do tempo de rádio/televisão’’.


Fleur, Alzira, Yasmyn, Ana e Eduarda são mulheres que vivem, estudam, trabalham e exercem seus deveres democráticos como qualquer outro cidadão brasileiro. Por trás de candidatas existem vivências individuais, que precisam ter seus direitos assegurados. O tensionamento e a polarização do cenário político brasileiro não pode ser justificativa para que haja descumprimentos da lei e fortalecimento de estruturas sociais que perpetuam preconceitos em nossa sociedade. O Amapá se caracteriza como um estado que ainda não pensa na representatividade feminina como urgência, e lida com a política institucional como uma máquina de produzir dinheiro em períodos eleitorais. As eleições municipais de 2024 trouxeram uma mensagem: a violência política de gênero também assola mulheres macapaenses, os recursos são insuficientes e as políticas públicas não alcançam quem precisa.


Há esperança


Mesmo considerando as limitações de um estado que frequentemente é afastado dos centros de discussões, o Amapá conta com a força de pessoas determinadas a transformar a realidade local. Movimentos sociais, artistas, coletivos políticos e, principalmente, mulheres estão trabalhando firmemente para que a violência política de gênero seja deixada para trás, e a participação feminina na esfera eleitoral tenha equidade e se torne segura. Em setembro de 2023, foi sancionada a Lei Ordinária Nº 2.891, que apresenta ações de prevenção e enfrentamento ao feminicídio no estado, prevendo o Programa Estadual de Combate ao Feminicídio. As ações ainda se encontram nas medidas contra a violência de gênero, de modo geral, sem que haja uma especificidade para casos de caráter político, contudo, já caracteriza um avanço.


Mulheres eleitas e futuras candidatas de Macapá não estão sozinhas. Contam com grandes lideranças e diversas organizações - como o Instituto de Mulheres Negras do Amapá (IMENA) e o Instituto Igarapé - para fortalecerem o debate feminista e acolher aquelas que são vulnerabilizadas pela violência. Essa é uma luta travada por figuras históricas no movimento de mulheres, como Alzira Nogueira e Ana Cristina Soares, que perpassa as pequenas vitórias ao longo dos anos e recai sobre a força da juventude, para que, em conjunto, se dê continuidade na construção de uma democracia firme, consolidada e justa para todos.

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