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Dias Sombrios | Fala, Tu!

AGCOM: Hoje, o Amapá completa um ano do início do histórico apagão que pôs 13 dos seus 16 municípios no escuro. Nesse tempo, muito já foi dito sobre os prejuízos financeiros e patrimoniais dos amapaenses afetados. Nesta edição da coluna "Fala, Tu!", contamos com uma crônica de Matheus Antônio sobre outro tipo de dano decorrente do evento. Invisível, mas não menos aflitivo.



DIAS SOMBRIOS


A chuva forte cai lá fora, acompanhada de alguns trovões. É novembro, então eu diria que isso é normal, mas ainda assusta o meu cachorro no quintal que não para de latir. Ele não está totalmente sozinho, o som alto e inesperado incomoda.

É feriado, mas eu estou em casa de novo procurando alguma coisa pra assistir no telefone. Estou relutando em começar a nova série coreana da Netflix que todo mundo fica falando. E se for ruim? Não quero gastar tanto tempo em algo ruim. A televisão está ligada apenas por estar. Liguei para ter o som de alguém falando ou um movimento na sala, sabe como é. O tédio do meu relaxamento desse dia parece o mesmo tédio de estudar e trabalhar, tudo olhando para uma tela, há quase dois anos.

Quase dois anos.

Um ano.

A tela da televisão escurece e o som da geladeira, estalando na cozinha, some de repente. O típico som que a gente repara só quando ele desaparece.

As luzes apagam, e até mesmo eu que não tenho medo do escuro fico arrepiado. Meu maxilar aperta e meu corpo trava. A sensação gelada que toma minha espinha em seguida, acompanha uma prece silenciosa e automática que simplesmente surge na minha cabeça.

“De novo não”

Fico encarando o celular e abaixo a barra de notificações, sem nem saber direito por quê. Olho as horas, o estado da minha bateria, confiro se a internet móvel está pegando. Tento me distrair, mas na minha cabeça fica martelando aquela angústia de que faltou energia, faltou energia de novo.

Estava tudo tão tranquilo, eu só iria relaxar, e de repente aquilo acontece.

Não é o fim do mundo, é só mais uma queda de energia, isso é normal, por que tanto drama?

Mas não somos qualquer um para esta ser qualquer queda de energia. Aquela falta de luz acende uma paranoia latente em qualquer amapaense, um trauma, uma cicatriz recém-fechada que arde toda vez que uma chuva forte está caindo e os trovões perturbam os céus. Sabe o que acontece quando a mínima queda acontece hoje em dia? Tudo volta de uma vez na nossa memória. É como se, por um segundo, estivéssemos lá de novo, mesmo que saibamos que está tudo bem. Sabemos?

Um ano atrás, em uma chuva como esta, a luz se foi e... Não voltou. Mais de vinte dias se passaram e toda noite, toda hora, a gente rezava para a energia voltar e acender nossas geladeiras para comidas e remédios, nossos ventiladores para noites de sono ou nossas lâmpadas para trabalharmos da forma que fosse possível. As notícias do motivo da queda e das possíveis soluções rolavam pelos nossos celulares, porque as televisões não ligavam, e isso quando conseguíamos carregá-los em algum lugar. Bairros do centro com racionamento e energia a cada 6 horas, bairros da periferia na escuridão por semanas. Dificuldade, solidariedade, angústia, revolta, choro, protesto, e acima de tudo, tínhamos anseio, tínhamos um lampejo de esperança ilógica para que do nada o transformador queimado fosse trocado e a luz voltasse.

O mesmo sentimento cego que nos fazia fechar os olhos nas madrugadas e rezar para que a energia estivesse aqui pela manhã é o que cegamente nos aterroriza hoje em dia, isso está marcado em nossas vidas, só estamos em paz quando a luz acende de novo.

Agora a chuva cai, e os minutos passam, a gente se acalma e liga a lanterna do celular, balança a mão para espantar os mosquitos e respira fundo, tentando espantar esse medo que tá sussurrando lá no fundo da cabeça. Logo, logo a energia volta, é só mais um tedioso dia da pandemia, com uma quedinha rápida por algum motivo qualquer. O inferno aconteceu há um ano atrás. Está tudo bem.

Foi há um ano.

Um ano.

 

Esta é a coluna “Fala, Tu!”, um espaço pensado para leitores da AGCOM expressarem suas opiniões, compartilharem obras e comentários. Podem ser cartas, crônicas, poesias, charges, fotografias, ilustrações, desenhos ou qualquer outro gênero textual. Envie seu texto a jornalismoagcom@gmail.com

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