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O debate das cotas na Unifap: estudantes questionam decisões da banca de heteroidentificação

Acadêmicos discutem a respeito de processos judiciais que permitem a entrada de candidatos não negros por meio de vagas reservadas para cotas.


Por Paulo Rafael e Luhana Baddini


A Universidade Federal do Amapá (Unifap) tem enfrentado diversos processos judiciais vindos de candidatos recusados pela banca de heteroidentificação que estão lutando para revogar  as decisões da avaliação técnica no processo de aferição racial e ocupar vagas reservadas para cotas com base em alegações fundamentadas nos argumentos de miscigenação, ancestralidade e democracia racial. Estudantes apontam a superlotação das turmas, principalmente no curso de medicina, e questionam a exclusão de candidatos negros.


A banca de heteroidentificação foi implementada em 2018 para somar à autodeclaração e faz parte do processo de matrícula dos candidatos admitidos nas universidades através de cotas raciais. É específica para candidatos negros (pretos e pardos), já que estes não conseguem comprovar sua raça/etnia via documentação. Em um processo rigoroso de análise fenotípica, busca-se compreender quais traços apontam semelhanças negróides que, historicamente, são alvos de preconceitos raciais, não considerando parentesco de nenhum grau e se atendo a avaliar aspectos como: cor da pele, cabelos, nariz, boca, entre outros.


Na Unifap, a banca de heteroidentificação é composta por cinco pessoas, sendo três vinculadas à universidade e duas advindas do movimento negro. Após diversas polêmicas e discordâncias, a instituição vem trabalhando em melhorias para garantir que o processo seja mais transparente e compreensível, porém, erros e fraudes ainda são comuns. As principais reclamações surgem dos estudantes autodeclarados negros que não são aprovados pela banca e daqueles que apontam a ocupação de vagas reservadas por pessoas que são socialmente lidas como brancas, o que causa revolta perante a injustiça.


Dentre várias críticas, é comum encontrar manifestações que apontam os processos judiciais como possibilitadores das fraudes. O curso de Medicina, por exemplo, se mantém como o mais afetado, sendo descrito pela comunidade acadêmica como “elitista”, “racista”, “excludente”, dentre outros adjetivos. Além dele, o de Relações Internacionais e Direito não passam longe na métrica de avaliações negativas. A coordenação do curso de medicina foi procurada, mas recusou comentar


Uma das nossas fontes, que pediu para não ser identificada , foi considerada inapta na banca de heteroidentificação no processo seletivo em 2021, no qual cerca de 100 pessoas foram reprovadas pela banca.


 “Um dos grandes desafios foi a falta de clareza nos critérios da banca. Eu trouxe documentos e testemunhos que sustentavam minha história, mas as perguntas feitas pareciam não considerar a complexidade da identidade racial e social. Isso me deixou confusa e frustrada”, relata. 


Quando perguntada sobre sua reação ao descobrir que não havia sido aprovada, ela conta que foi devastador, pois havia depositado suas esperança nessa oportunidade. “Perder a vaga por meio da cota, que eu achava que era um direito meu, foi um golpe muito duro. Senti que minha identidade não foi reconhecida e que todo o esforço não valeu a pena”, lembra. 


“Venho de uma comunidade periférica e sempre sonhei em ingressar na universidade. Acredito que a educação é uma ferramenta poderosa para transformar vidas. Não podemos deixar que experiências negativas nos calem. A luta por inclusão e reconhecimento é uma batalha coletiva e devemos enfrentá-la juntos”, destaca.


Elisa Maria, de 21 anos, veio de Salvador–BA para ser acadêmica do curso de Medicina e entrou na universidade por meio das cotas raciais. Em sua visão, o curso de medicina apresenta um problema estrutural que perpetua o racismo: “Se você vai ao bloco de Medicina, você espera ver brancos, e é isso que você encontra [...] é isso que ‘eles’ querem também. O racismo é estrutural, então as pessoas entendem que esses cursos devem ser ocupados por pessoas brancas”, declara a acadêmica.


Sobre estudantes e até mesmo colegas de curso que entraram com processo judicial contra a decisão da banca, a acadêmica relata: “Isso me deixa triste, porque hoje eu só posso cursar medicina por causa das cotas. Se tem pessoas brancas que estão entrando através das cotas raciais, elas estão tirando vagas de outras pessoas que também poderiam estar ocupando o espaço”. 


A futura geriatra diz que se sente solitária em seu curso, pois é a única pessoa negra de pele retinta da sua turma. Ela afirma que tem colegas que são pardos e que entraram por cotas, mas outros são brancos e entraram por cotas também. “E aí? Como é que fica? Se o objetivo era justamente fazer uma reparação histórica, o que estão fazendo aqui, colocando essas mesmas pessoas privilegiadas?”, questiona a estudante.


“A gente sabe que, quanto mais clara a pessoa é, mais privilégios ela possui, e não são só privilégios financeiros, mas o privilégio de ser bem aceito nos locais, de não duvidarem do que você está falando e de quem você é, se você é bom e inteligente o suficiente, se você é capaz de fazer aquilo que você precisa fazer”, complementa. 


A aferição racial vem sendo instituída com discordâncias e falhas sistemática baseando-se em um sistema de categorização, através do IBGE, a população brasileira se divide em cinco categorias: brancos, indígenas, amarelos, pretos e pardos. As duas últimas são reconhecidas pelo órgão federal como subcategorias de cor que podem ser reunidas em uma só população: negros. Apesar de ser um conceito aplicado nacionalmente, as fraudes são constantes. O processo de identificação racial do sujeito brasileiro é atravessado por falta de acesso à informação e costumes naturalizados pelo racismo.


Para Elisa, precisamos nos ater à realidade do Brasil, pois o país passou por todo um processo de miscigenação, então vão ter pessoas com traços negróides. “Eu tenho um avô que era, vamos dizer, ‘um pardo mais para branco’, e não é por isso que as pessoas me veem como uma pessoa branca. Então por que eu vou usar minha linhagem, se isso não representa como as pessoas me veem? Eu não preciso falar que eu sou negra quando eu chego aos espaços, as pessoas olham e sabem disso. Então essa ideia de utilizar a ancestralidade para justificar que a pessoa sofre preconceito não é a realidade do nosso Brasil”, pontua.


João Augusto, militante e articulador de base do Movimento Negro Unificado (MNU), cursa licenciatura em História na Unifap. Com estudos voltados para a pauta racial, o militante ressalta que muitas pessoas pretas autodeclaram-se como pardas. “O autodeclarado pardo pode ser visto socialmente como preto, uma vez que muitos optam se declarar pardos para negar a sua verdadeira cor”, destaca.


“Na cabeça de alguns de nós, negros, somos privilegiados pelo sistema, esquecendo do passado escravista e do presente do nosso país. Desse modo algumas pessoas brancas se declaram pardas na tentativa de usufruir dessas políticas afirmativas, isso é uma forma de ludibriar e de tirar a vaga de quem realmente precisa”, complementa o estudante. Tal pensamento critica o discurso difundido por pensadores como Gilberto Freyre, que defendem a “mescla cultural das três raças” – branca, preta e indígena.


Ações judiciais 


O vereador, advogado e professor Dudu Tavares é o principal nome encontrado quando se busca casos de processos judiciais contra indeferimento de candidatos. Dudu acredita que o critério de ancestralidade precisa ser aplicado no momento de aferição. “Infelizmente, as bancas de heteroidentificação estão agindo de forma equivocada na avaliação, fazendo análise subjetiva de quem venha a ser pardo ou sobre o que são os traços negróides. Inclusive, uma questão que precisa ser enfrentada é a falta de reconhecimento da ancestralidade como fator de reconhecimento para acesso às cotas”, destaca o vereador.


O advogado, que auxilia diversos estudantes indeferidos para a efetivação de suas matrículas, diz que a Unifap transforma a política pública afirmativa em revitimização. Ele argumenta que laudos médicos sobre tom de pele e características do candidato são negados pela comissão da instituição e afirma, ainda, que as comissões são criadas pela gestão pública, porém, não recebem qualificação para lidar com a realidade dos candidatos. Em sua opinião, além de laudos e conceitos de ancestralidade, a banca deveria entender o percurso de vida do estudante. “Deixam de perguntar sobre possíveis preconceitos enfrentados no curso da vida até a chegada ali, perante aquela comissão, para indagar qual o motivo de quererem cursar medicina, direito ou engenharia”, alega.


Quando questionado sobre a maneira que esses processos judiciais afetam as ações afirmativas, Tavares afirma que as políticas de ação afirmativa são instrumentos necessários e, caso sejam negados os direitos aos que efetivamente os têm, a medida é judicializar, até mesmo para que o sistema se aprimore. 


“Se as bancas e as comissões recursais efetivamente prestarem o serviço de forma adequada, não tem como ocorrer fraude para beneficiar pessoas brancas. Lembrando sempre que a cor da pele não é o fator preponderante e definitivo para classificação”, reforça o professor.


Italorran Caldas, advogado e servidor técnico vinculado à Procuradoria Federal Especializada da UNIFAP, desenvolveu pesquisas para apurar os casos de estudantes que utilizaram a justiça como ferramenta para adentrar na Unifap. Os dados de suas pesquisas apontam que, de 2021 a 2023, a instituição recebeu 62 ações judiciais demandando matrícula dos candidatos indeferidos. Este número apresenta uma situação de alerta visto que, até o momento da realização desta entrevista, cerca de 61,05% dos processos ainda estavam em fase recursal, podendo levar anos para decisão definitiva. Desta forma, a instituição precisa estar preparada para incluir novos alunos a qualquer momento, bem como excluí-los do seu quadro de matriculados. O planejamento, a infraestrutura, os calendários semestrais e os servidores são completamente atingidos pela imprecisão das causas judicializadas.


 “Quando a decisão liminar é favorável para pessoa, ela vai para a universidade e é integrada no curso de medicina, por exemplo. Depois, na sentença, é cancelado, então cancela a matrícula dela. Já em grau recursal, é concedido e ela se reintegra. Estamos falando em um intervalo de tempo de dois ou três anos. Então imagina: a universidade tem uma programação, tem uma política pública para implementar, e do nada cinco alunos entram com determinação judicial. Desestrutura o que estava programado”, explica o advogado.


O processo da banca de heteroidentificação da Universidade apresenta falhas, que, até o último processo seletivo, não haviam sido solucionadas. O principal problema apontado pela justiça é a inconclusividade dos relatórios, que são preenchidos com imprecisão e não detalham os motivos específicos. Exemplo disso é que não especificam se a pessoa tinha cabelos característicos de indivíduos negros ou não. Desta forma, ao chegar às repartições jurídicas federais, tais documentos emitidos pela banca podem ser, facilmente, contrariados por processos embasados e bem construídos, elaborados pelos advogados do requerente.


“As fotos que são selecionadas pelo candidato são as fotos que favorecem ele. Um ambiente mais escuro, uma foto que o cabelo está mais cacheado, e, se você prestar atenção, são fotos relacionadas à infância do candidato: a pessoa tem 17 ou 18 anos, mas as fotos que foram anexadas na petição inicial é de quando tinha sete, seis, cinco anos. Tudo isso precisa ser levado em consideração’’, detalha. 


É importante ressaltar que, comumente, em processos judiciais que seguem este padrão, não há audiência, portanto, o candidato não se apresenta perante um júri para que seja definido procedente ou improcedente. Ou seja, toda a avaliação gira em torno de documentos e fotos anexadas. Caldas diz que o principal argumento utilizado para confirmar que aquele candidato seria beneficiário da ação afirmativa são fotos. 


No relatório disponibilizado pelo advogado, podemos observar mais um dado interessante: de 62 causas, apenas duas foram representadas pela Defensoria Pública. Assim, estatisticamente prova-se que os candidatos que recorrem possuem condições financeiras para arcar com todos os gastos necessários. Considera-se, ainda, a possibilidade de defesa pro bono, sendo, no caso, advogados que aceitam a causa sem cobrar.


Próximos passos 


No início do ano, a Unifap divulgou que nos próximos processos seletivos as bancas de heteroidentificação serão filmadas. 


“Eu sou um pouco descrente, porque a branquitude é extremamente esperta. Estamos mexendo em um ninho de vespas, e quando a gente tirar essa possibilidade deles utilizarem a ação judicial para entrar, a gente vai ter uma resposta, né? Porque são pessoas brancas que têm condições financeiras de arcar com processo judicial, é questão de dinheiro e de contatos”, salienta a acadêmica.


Vale ressaltar que com a ação da Superintendência de Políticas Afirmativas e Direitos Humanos (SUPADH) e com o tensionamento entre a gestão da Unifap e o movimento estudantil, foram criadas novas metodologias além das filmagens, como vídeos de simulação da banca de heteroidentificação e explicações detalhadas nos meios de comunicação, visando processos seletivos mais justos.


Em 2023, foi executado o primeiro Curso de Capacitação para Comissões de Heteroidentificação, uma realização do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, que vem sendo grande representação na luta por justiça social dentro da Universidade. O curso foi concluído com sucesso e formou um número recorde de docentes, técnicos e acadêmicos capacitados para comporem bancas de aferição.


Levando em consideração a quantia de ações judiciais e as críticas tecidas ao processo de heteroidentificação, os membros da Unifap também têm se preparado. Há uma iniciativa por parte do corpo docente, que constantemente desenvolve pesquisas e projetos, abordando desde a importância das cotas raciais às medidas de reparação da dívida histórica com a população negra brasileira.


Com o reconhecimento do problema existente, há a possibilidade de evolução. Tem-se um vislumbre do que poderá ser uma universidade mais justa, com políticas de ações afirmativas eficazes, que possam construir uma comunidade acadêmica saudável, uma infraestrutura capaz de atender todas as demandas e um futuro proeminente para jovens negros que desejam exercer a profissão dos sonhos por meio do ensino disponibilizado pela Unifap. A esperança é de que no futuro seja possível encontrar, nos corredores do bloco de medicina, garotas pretas de pele retinta, assim como Elisa Maria.


A discussão das cotas raciais no Brasil 


As cotas étnico-raciais são um sistema de ações afirmativas desenvolvido com o objetivo de gerar reparação histórica em diversos países que reconhecem a desigualdade entre diferentes populações, seja por sistemas escravagistas utilizados no passado ou por melhoria nas relações políticas e internacionais. No Brasil, as cotas foram instituídas em agosto de 2012 a partir da Lei 12.711, com atualizações da lei 13.409 de dezembro de 2016, e é conhecida como Lei da Reserva de Vagas. Após sua sanção, definiu-se que as universidades devem disponibilizar pelo menos metade das vagas nas instituições federais de educação superior, vinculadas ao Ministério da Educação, para estudantes que cursaram o ensino médio da rede pública de ensino.


O Ministério da Educação (MEC) explica que a reserva de vagas para candidatos negros (pretos e pardos), indígenas, quilombolas e deficientes é calculada com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio do censo que disponibiliza dados, apontando a quantidade de grupos populacionais em cada estado. Em todos os casos, é necessário que haja comprovação documental e/ou por banca de heteroidentificação.


Ainda na atualidade, as cotas são apontadas como desnecessárias e injustas. Em junho de 2022, o Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa realizada em parceria com o Cesop-Unicamp, apontando que 34%, das 2.090 pessoas entrevistadas, discordam da política de cotas. Em maio de 2021, ainda no exercício de seu mandato, o ex-presidente Jair Bolsonaro exemplificou o que parte da sociedade brasileira acredita e defende. Durante uma live, na qual conversava com seus apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro foi questionado sobre sua fama de racista. Em resposta, ele disse: “O que mais pegou foi o racismo e a gente demonstra aí que não existe isso para mim. Até digo ‘somos todos iguais’. Sempre questionei a questão das cotas. Acho que a cota eleva o homem pela cor da sua pele como subalterno ao outro de cor de pele diferente. Somos iguais. O meu sogro é o Paulo Negão”, disse o ex-presidente. 


A problemática que circunda o que é ser cidadão negro no Brasil vai além do compreendido pelas estatísticas. Pensadores do movimento negro discordam da criação de uma subcategoria para pessoas de cor parda, argumentando que causa divisão de pessoas dentro de uma mesma raça social. Os pardos são novidade para a sociedade contemporânea. O termo, incorporado em 1950 pelo IBGE, configura o que antes seria entendido como pessoas pretas de pele clara (lightskin) – o que ainda é entendido como correto por outros países. A partir disso, surgem conceitos como o colorismo, que explica o grau de racismo sofrido por cada pessoa em razão da sua tonalidade, sendo mais pesado para os de pele mais retinta.


Em 2002, Bell Hooks concedeu uma entrevista para Ken Paulson, no programa Speaking Freely. Nesta oportunidade, a escritora, professora e ativista explica sua linha de pensamento: “Frequentemente, pessoas brancas vão conhecer pessoas pretas que transgridem completamente todos os estereótipos raciais que já tiveram na vida. Mas, em vez de se libertarem do estereótipos, eles criam uma categoria especial para esta pessoa e dizem ‘você não é igual ao resto das pessoas pretas’, no lugar de dizer ‘minhas noções sobre os pretos eram muito limitadas’”. Tal linha de entendimento é adotada por diversos militantes que acreditam que a subcategorização é uma estratégia que cede aos racistas oportunidades para, por exemplo, fraudar cotas, alegando ter “cor suficiente” para ser pardo.


No Amapá, estado que integra a região Norte do país, o reconhecimento enquanto pessoa racializada é ainda mais conturbado. Dados do censo de 2022 revelam que 65,3% dos amapaenses consideram-se pardos, porém, existem discordâncias. O pardo na Amazônia é popularmente compreendido de maneira diferenciada, pois se configura enquanto um sujeito ambíguo, que pode ou não ter ancestralidade negra.


A figura do “pardo amazônico” pode ser problemática para processos seletivos. No caso da Unifap, a maioria dos processos judiciais que revogam a aferição da banca de heteroidentificação se baseiam nos traços dos candidatos: nariz largo, lábios carnudos, cabelos cacheados, entre outros. A ausência de informação faz com que, no Amapá, uma pessoa branca com traços herdados pela miscigenação seja deferida para ocupar vaga pelo sistema de cotas.



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