ENTREVISTA
O risco à própria vida levou a professora Elioneide Cardoso Cruz, conhecida como Eli Cruz, da rede estadual de ensino do Governo do Amapá, a buscar proteção do Estado. Primeiro, dialogando com as vozes oficiais da Secretaria de Políticas Públicas para as mulheres e também com a Secretaria de Educação. Mas, não houve ações imediatas. Posteriormente, quando torna o fato público nas redes sociais, participou de uma oitiva pela Ouvidora da SEED, no último dia 02 de outubro. Nesta segunda-feira, dia 09, ela receberá resposta sobre a situação vulnerável a qual está exposta.
A professora é notória ativista pelos direitos humanos de pessoas LGBTQIAPN+ e autora da primeira pesquisa sobre violência contra Travestis e Transexuais nos ambientes escolares. Sua trajetória política sempre a colocou em desafios, mas, desta vez, a ameaça ocorre no espaço escolar, envolvendo pais, crianças e equipe gestora, desde sua chegada na escola José de Anchieta, no Santa Rita. As escolas do estado vêm sendo qualificadas para atuar a favor de uma educação inclusiva e com pleno respeito à diversidade, há mais de 20 anos. Porém, ainda é espaço de violência.
AGCOM: Professora, a senhora se sente ameaçada ou assediada no seu espaço de trabalho?
ELI CRUZ: Não só me sinto assediada, como tenho plena certeza que minha vida corre sérios riscos todos os dias e por isso já denunciei em Boletim de Ocorrência. Dos meus 27 anos e 3 meses de carreira eu posso afirmar que, por quase duas décadas, eu sofro assédio por parte das equipes gestoras desde quando eu trabalhava na Escola Maria de Nazaré Vasconcelos, Escola Professor Paulo Freire e hoje, na escola José de Anchieta. Tudo em razão da minha orientação sexual. Quando a homofobia ainda nem era considerada um crime pelo STF, eu já sofria toda sorte de violências nas escolas por onde passei. Era a lesbofobia se manifestando e eu me defendendo como podia. Nem sei como estou viva hoje. A SEED, o SINSEPEAP sempre tomaram conhecimento de tudo porque eu sempre documentei todos esses assédios. A conclusão sempre foi em desfavor do meu sofrimento e a solução para me punir era me mudar de escola. Quando mudava a direção eu sempre era chamada para ser alertada que estavam me monitorando. As violências começam na minha chegada e até as frases utilizadas para me violentar são sempre as mesmas: "eu sei de onde a senhora vem e o que a senhora faz". Até chegar ao momento em que tomo conhecimento de que um homem armado entrou na escola para ceifar a minha vida, com conhecimento da gestão escolar e sem ações coercitivas ao homem. Eu tenho denunciado exaustivamente o que as pesquisas têm revelado em todo o Brasil, a escola é um espaço hostil para a população LGBTQIAPN+. Essas violências dentro das escolas têm resultado em várias declarações de pessoas que já pensaram em suicídio, em razão do Estado nunca ter se posicionado ou punido pessoas que praticam essas violências.
AGCOM: Por que você buscou por proteção no Estado e em quê tem resultado?
ELI CRUZ: Eu cheguei na escola José de Anchieta, dia 03 de agosto, devolvida da escola Paulo Freire. As aulas começaram dia 07 de agosto e, já na minha chegada, não fui bem recebida pelo Diretor e pela pedagoga. Os assédios começaram desde o primeiro dia e não pararam mais. Fui até a sala do Diretor, na presença da pedagoga, pedir que o mesmo parasse de entrar na minha sala e permanecesse lá dentro atrapalhando as minhas aulas e me fitando, tentando me constranger na presença das crianças e da intérprete que assistia a tudo em silêncio. Dia após dia ele me cercava dentro da escola. Chamei as professoras mulheres que eu pude, mesmo sem as conhecer e perguntei se ele as assediava também? Elas disseram que não. Os ataques continuaram em revezamento, ora o Diretor ora o serviço técnico, com a ajuda do professor que fora substituir. No dia 22 de agosto, o Diretor me intercepta na minha saída com uma expressão de desespero e me pergunta se eu posso permanecer na escola após o meu horário porque algo de muito grave teria acontecido e ele iria registrar tudo. Perguntei se era comigo e quando ele disse que sim, eu pedi que ele fizesse uma convocação - eu já venho de quase duas décadas dos mesmos assédios e intuí que se tratava de outro, e eu não estava enganada. No dia seguinte, fui convocada para a reunião e pela posição das pessoas na sala e pelas acusações sem o menor cabimento, proferidas pelo Diretor e pelo serviço técnico, que se revezavam nas agressões, eu percebi que ali, sem que ninguém pudesse ouvir ou saber o que se passava, um ataque homofóbico e atentados contra a minha honra foram praticados na presença silenciosa de uma profissional da saúde mental (a psicóloga), sem que ela esboçasse nenhuma compaixão ou acolhimento a mim que tinha acabado de chegar na escola. Após fazer meu relato na reunião, pedi registros na ata das acusações que o Diretor fazia a mim, mas a servidora se negou. Em pauta, um pai em fúria, que nunca me viu nem eu a ele, adentrou as dependências da escola, segundo o Diretor, visivelmente descontrolado procurando por mim. O que me causou espanto foi equipe gestora ter escondido que o mesmo estava de posse de uma arma de fogo e se dirigia para a sala de aula onde eu me encontrava. Ao desconfiar que algo muito grave estava sendo mantido em segredo, entre a direção e o serviço técnico, e que dizia respeito à minha integridade física, busquei imediatamente comunicar a Secretária de Políticas públicas para as mulheres, Adrianna Ramos, ao mesmo tempo que eu relatava tudo por mensagem de wattsap a mulheres da minha mais alta confiança, caso eu viesse sofrer um atentado. Concomitante a isso, mandei as denúncias para as Secretárias Antonia Andrade, Sandra Casimiro e Ilziane Launé. A única a responder foi a Secretária Antonia Andrade, que sempre teve a postura de não compactuar com esses ataques e disse que tomaria uma providência. Mas, nenhuma efetiva ação foi tomada e depois do meu plantão em frente a porta do Gabinete da Secretária Antonia Andrade, desde 8h da manhã até 15h, fui recebida. Ela foi à escola e ao chegar lá, ao ouvir da boca do Diretor que o pai do menor estava de posse de uma arma de fogo para ceifar a minha vida, a mesma disse na presença de todas que ali estavam que: "não via motivos para fazer nenhuma intervenção na escola". Ao ouvir, incrédula, aquele posicionamento, protestei e insisti que ela fizesse uma reunião com os pais e mães, pois aquela ameaça colocava em risco não só a minha vida como a das crianças. Daí, a secretaria anunciou a chamada da equipe do E-paz para uma resolução de conflitos, mas a reunião marcada foi cancelada. Protestei. E recebi um comunicado da Ouvidoria da Secretaria de Educação que eu seria atendida e estou aguardando o posicionamento da Secretária titular da Pasta, Sandra Casimiro, a qual a Ouvidoria está ligada. O ouvidor se comprometeu em dar uma resposta nesta segunda-feira, dia 09 de outubro.
AGCOM: O que a surpreende e a faz se pronunciar publicamente no caso ocorrido nestas últimas semanas?
ELI CRUZ: A lesbofobia é uma violência estrutural e está ligada diretamente à uma visão colonizadora que não fazia parte da cultura indígena e nem africana. Essa violência vem de uma concepção europeia binária, machista e que diz que mulheres lésbicas afrontam e/ou destoam do restante das mulheres de uma sociedade patriarcal. Uma mulher que não se relaciona afetivamente com os homens. Quem se posiciona politicamente como uma identidade lésbica, precisa ser silenciada, morta, com ou sem requinte de crueldade. No dossiê de lesbocídio (2017), 83% das mulheres lésbicas que são assassinadas nunca viram seus algozes e eles também não as conheciam. O que responde perfeitamente o perfil da ameaça que estou submetida. As pesquisas apontam o silenciamento. A Rádio Difusora não se pronunciou, a Secretária de Comunicação trocou a foto de perfil que estampava a bandeira do arco-íris, o AMA LBTI, ligado à Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, não se pronuncia, a fundação Marabaixo se mantém num silêncio como se ali não existissem mulheres lésbicas. Eu já recebi vários convites armados para me cooptar para o silenciamento.
AGCOM: Como a comunidade ativista tem atuado enquanto rede de acolhimento?
ELI CRUZ: Sou sócia fundadora da primeira organização da Amazônia, o grupo GHATA. Nossa organização sempre foi muito atuante no Amapá e com reconhecimento por todo o país. Tenho observado que existem pessoas que se reivindicam defensoras dos direitos humanos, vivem postando fotos com a bandeira do arco-íris mas, de fato, nunca estiveram comprometidas com a nossa causa. Não existe rede de acolhimento no Amapá para a nossa população. Existem pessoas que o discurso não corresponde à prática. Os conselhos foram cooptados e silenciados já têm mais de uma década. O que se vê muito são pessoas se aproximando da nossa população para tirar proveito político. A rede de acolhimento às mulheres vítimas de violências não atendem mulheres lésbicas, nem mulheres trans e travestis.
תגובות