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  • Foto do escritorIngra Tadaiesky

Fronteira do Gênero em populações de rua: a amarga vida das mulheres

Atualizado: 24 de abr. de 2021

Seus corpos são terras sem lei e a violência é rotina diária.

Mulher em situação de rua / Foto: Aog Rocha (@aog.rocha)

Para além das paredes que compõem nossos metros quadrados de mundo, existe uma realidade pouco comentada: a das mulheres em situação de rua. Abandonadas pela sociedade, elas lutam para sobreviver em um cenário de dominação masculina, onde sua voz é sempre sobreposta por uma mais grave. Sempre!

Na vida incluída, mulheres sofrem com o machismo diário, possuem medos e direitos negados. Nas ruas, esse cenário é muito mais intenso. No Brasil, a quantidade de mulheres que residem nas ruas é numericamente menor que a de homens. Segundo dados do Ministério da Saúde, a população feminina corresponde a 15% do total. Elas são as personagens que mais sofrem com esse cenário de vulnerabilidade.

Foto: Aog Rocha (@aog.rocha)

A população em situação de rua é tida como um mundo à parte da sociedade. Aqueles que possuem um teto sobre a sua cabeça não os veem por mais de dois minutos, na negação ou doação de um trocado. Esse modo de olhar nos afasta do outro ser. Há falta de dignidade humana na vida que sobrevive nas ruas e passamos a não saber e até em não nos incomodar pela naturalização da existência da mendicância.

O QUE LEVA UMA MULHER ÀS RUAS

Me separei do meu ex marido. Ele me deu uma facada e eu quase morri, passei 6 meses na UTI”, conta Jurema Conceição da Silva, 59. Ela passou um ano morando nas ruas de Macapá após o término de seu casamento. “Eu sobrevivi e decidi terminar com ele”, complementa ela.

Um dos principais motivos para uma mulher estar em situação de rua é a violência sofrida no antigo lar. A rua acaba se tornando consequência, ela é fuga das agressões físicas e sexuais vindas de antigos cônjuges ou parentes.

“Para homens, estar nas ruas é visto como fracasso. Eles querem sempre voltar pra situação que tinham antes. Já para a mulher, estar nas ruas é inicialmente uma válvula de escape de casas onde sofriam abusos”, explica Karoline Duarte, socióloga que atua com a população em situação de rua, de Macapá, através do Centro Pop.

Gráfico: Mapa da Violência 2020/ Ipea

A trajetória da mulher que está nas ruas é uma narrativa de contínuas dores. A saída do ambiente que lhes violava é mais importante que o “para onde ir”, de certa forma, a rua representa um recomeço.

Karine Silva é psicóloga e atua no Consultório na Rua, atendendo pessoas que estão socializadas nesse ambiente. Ela conta que, durante sua atuação, a história que mais lhe marcou foi a de uma jovem que foi para as ruas porque foi abusada sexualmente por todos os seus padrastos. A mãe, por ser mais velha, usava a menina como moeda sexual de troca. Caso seus maridos quisessem, poderiam usar o corpo de sua filha na condição de também ter relações íntimas com ela.

“Quando uma mulher chega à situação de rua, é porque as políticas públicas não funcionaram.”

Como ela, existem milhões de mulheres por toda a geografia deste país violadas, ao ponto de se tornar insuportável existir na configuração de uma casa que as violenta. A rua é uma saída para a sobrevivência.

“Quando uma mulher chega à situação de rua, é porque as políticas públicas não funcionaram. porque a promotoria não funcionou, porque a delegacia da mulher não funcionou, nem os CRAS e CREAS, ou seja, todos esses serviços que trabalham com essa população não funcionaram”, fala Luiz Henrique Oliveira, psicanalista que integra o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, e também é consultor de políticas públicas para esse público.

Psicólogo Luiz Henrique / Foto: Arquivo Pessoal

Essas mulheres, por dependerem financeiramente dos homens que as agridem ficam completamente desamparadas quando saem de suas casas. O primeiro dia nas ruas é apenas por não ter para onde ir, mas possuem esperanças de conseguir um trabalho. Nos dias seguintes, a impossibilidade de se higienizar já começa a dar os sinais da rua. Cada minuto que passa é um minuto mais longe de qualquer possibilidade de um emprego.

“Muitas vezes se identifica uma pessoa em situação de rua como um fracasso daquela biografia e não como um fracasso do sistema que levou aquela pessoa àquela condição”

“Muitas vezes se identifica uma pessoa em situação de rua como um fracasso daquela biografia e não como um fracasso do sistema que levou aquela pessoa àquela condição, que não as abrigou, que não as deu direitos, que não remunerou da maneira decente”, conta Dário de Souza, professor doutor da Universidade Estadual do Rio De Janeiro que estuda a estratificação da pobreza.

Elas fogem da violência e se deparam, em muitos casos, com mais violência.

O CORPO PÚBLICO

A mulher em situação de rua sofre o risco de violência 24 horas por dia, seja psicológica, física ou sexual. Ela se torna um mostruário de dores e dribla, ao máximo, sua realidade na tentativa de sempre conseguir o “menos pior” para si.

Karoline fala da possibilidade de se desenvolver relações afetivas nas ruas. É o caso de Jurema. Ela, durante o ano que esteve em situação de rua, encontrou seu atual marido e, juntos, conseguiram se estruturar e sair desse cenário. Mas não são todas que conseguem essa narrativa pra si.

A socióloga conta que o principal medo que as atinge é o mesmo medo que atinge mulheres na sociedade inclusiva: o estupro e a morte. Quando as mulheres possuem documentos, casas e famílias, elas são alvo; imagine aquelas que não possuem nada disso. A violência e a violação são formas garantidas, pois elas são vistas como indigentes, um corpo público. Essa violência vem de diversas formas, todas de homens.

Muitas mulheres em situação de rua encontram companheiros, mas diferente de Jurema, elas sofrem abusos e agressões desse que escolheram estar ao lado. Preferem sofrer a violência de apenas um, do que de todos. Aquela que não possui um homem para vigiar seu sono é violentada por qualquer um que passe. Homens respeitam homens, mulheres são como mais um de seus pertences que eles carregam nas costas.

Rafaela Coutinho é psicóloga que trabalha com a população em situação de rua, no Centro Pop. Ela conta que sobre uma mulher que foi até ela em busca de ajuda para denunciar uma agressão que sofreu do companheiro. Ela foi vítima de espancamento e estupros, mas, algum tempo depois de denunciar na Delegacia da Mulher, ela retomou o relacionamento.

A denúncia é dificultosa, se vão sozinhas sequer são ouvidas. Rafaela afirma que a mulher teria sido deslegitimada caso fosse desacompanhada. Pensariam que ela estaria mentindo ou alucinando. “Se pra gente já é difícil reconhecer as violências que a gente sofre, imagina pra uma mulher que tem uma vida inteira em violência? A violência é normatizada”, fala a psicóloga.

Maralice Dos Santos, líder do Movimento Nacional de População em Situação de Rua, declara em podcast Rádio Cidadania sobre as mulheres mais jovens nas ruas. Elas se vestem como os homens para evitar que sejam violentadas.

Segundo o psicanalista Luiz Henrique, “tudo foi tirado dessa mulher, dela foi tirada a dignidade de uma casa, a dignidade de uma família, a dignidade do seu corpo, quanto mais tempo uma mulher está em situação de rua, mais ela é acometida por estupro. Com isso, a saúde mental fica comprometida”.

Equipe Consultório na Rua/ Foto: Arquivo Pessoal

SAÚDE MENTAL NAS RUAS

Outro fator que é causa e, também, consequência da vida nas ruas são problemas relacionados à saúde mental dessas mulheres. Depois da Lei No 10.216, de 6 de abril de 2001, a Lei Antimanicomial, que responsabiliza a família dos cuidados de pessoas com transtornos mentais, houve casos de abandonos nas ruas.

Toda história de uma mulher em situação de rua se inicia com alguma forma de violência. Karine fala sobre a vida de uma senhora que anda pelas ruas de Macapá tocando nos órgãos sexuais dos homens que passam. Ela já se tornou lenda urbana, piada e folclore. Mas, essa fama não explica os motivos que a colocaram nessa posição.

“Ela teve vivencias cruéis de abuso sexual que fizeram com que ela encontrasse na rua um refúgio. Isso além de doenças e surtos neurológicos e psicológicos que ela possui”, explica Karine. Enxergam nessa mulher motivos para piadas e chacotas pelos toques indesejados que faz, mas tudo o que ela conhece foi marcado pela violência que sofreu. A vida foi moldada por toques indesejados. “Pode parecer cômico, mas, na verdade, é muito doloroso”, conclui a psicóloga.

A rua traz traumas e silencia. Karoline conta que as mulheres que frequentam o Centro Pop possuem dificuldades de falar, geralmente são mais retraídas ou possuem certa aspereza. Elas não confiam e, principalmente, não confiam em homens. Na rua, há a condicionante da dominação masculina. Elas se calam quando eles falam. “A gente notou que as mulheres não se expressavam tanto quanto os homens nos espaços de conversa que a gente fazia, eles tomavam o lugar na fala”, diz a socióloga.

Equipe Centro Pop com mulheres em situação de rua/ Foto: Arquivo Pessoal

A partir desse entendimento, foram feitas atividades exclusivas para o público feminino a fim de proporcionar a maior interação e gerar confiança entre elas. Karoline explica sobre as atividades, que eram possíveis antes do contexto da pandemia e geravam bons resultados, elas sentiam maior abertura das mulheres em conversar e falar sobre o que passavam.

Apesar de toda a violência, não devemos reduzi-las a dor que lhes aflige. São mulheres que precisam ser vistas com olhos capazes de enxergar uma vida, onde todos só veem o sofrimento e a miséria. Elas precisam de direitos garantidos e políticas públicas que as ajudem.

DIREITO DE EXISTIR

“Nós somos cidadãs de direito que não temos direitos, porque até os homens em situação de rua se protegem e a política é feita de homem para os homens”, essa foi a fala de Maralice dos Santos para o podcast Rádio Cidadania. A afirmação é motivo de reflexão, mulheres em situação de rua possuem particularidade que homens na mesma condição não possuem. Afirma, ainda, que não é dando um prato de comida ou uma roupa que se tira alguém da rua, mas sim dando oportunidades de trabalho para essa pessoa se manter. “O sistema que nos jogou nas ruas e é ele que tem que nos tirar”.

Maralice dos Santos/ Foto: Rio Invisível

Luiz Henrique explica que o Centro Pop deve existir juntamente com o abrigamento social, são serviços casados. Mas, no estado do Amapá, não existe nenhum local que hospede essa população, “é necessário para a transição dessa pessoa de volta para a comunidade”, explica ele.

Mulheres menstruam e engravidam. Tais especificidades do gênero causam polêmicas acerca dos direitos e das políticas públicas para as mulheres em situação de rua. Karine conta que o Consultório na Rua faz arrecadações com a população para a distribuição de absorventes, mesmo que isso não seja de competência da equipe.

“A gente não tem essa política de higienização da mulher em situação de rua, a gente não tem políticas públicas ativas para trabalhar isso com elas, não tem essa visibilidade. Os gestores não olham para as pessoas em situação de rua porque elas não geram voto”, explica a psicóloga.

Quando uma mulher é vítima de feminicídio causa grande comoção, vamos para as redes sociais, protestamos e lutamos por aquela vida. Todos os dias, mulheres em situação de rua morrem e não geram a mesma comoção. A morte se torna apenas um ponto final na história de uma vida sem direitos.

Na contramão da morte há a vida, a gestação de uma vida. A gravidez para mulheres em situação de rua gera um debate político. Mães, em situação de rua, devem ter a guarda de seus filhos?

Dário de Souza, em seus estudos, identificou que muitas vezes as autoridades julgam essas mulheres inaptas para a maternidade e questiona alegando que o Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê que a pobreza seja fator determinante para a perda do poder familiar. “A mulher é mais julgada moralmente em qualquer seguimento social, e a situação de rua sobrepõe-se ainda mais as coisas”, conclui ele.

Dificilmente as mulheres em situação de rua ficam com as crianças, que seguem para a tutela de um parente, caso surja alguém interessado, ou vão para um abrigo até que a mãe tenha condições de ter sua guarda. Karoline explica que a rua não é um ambiente seguro para uma criança e, por isso, se institucionaliza. Mas ela questiona sobra o afastamento como mais uma violência: “essa mulher não tem direito a maternidade dela? Ela não pode ser mãe? Ela não carregou essa criança por nove meses na barriga?”.

Mulheres em situação de rua são vistas em todos os lugares, mas não são enxergadas. Elas são partes da mesma sociedade que eu e você vivemos, mas não acordam em camas quentes. Na verdade, elas pouco dormem pelo medo. Andam aos tropeços por um mundo que as atropela.



Serviços:

Centro Pop

Perpétuo Socorro, Macapá AP

Consultório na Rua

Móvel

Podcast:

Rádio Cidadania

Rio Invisível:

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