Mais de 80 famílias existem na comunidade sem acesso a posto de saúde, escola e transporte público.
A Comunidade da Casa Grande possui um histórico de resistência e luta pela terra, mas a principal batalha que enfrentam hoje, é contra a invisibilidade do governo municipal e estadual. Assim, define as dificuldades enfrentadas pelos moradores da comunidade, que fica a 23km de Macapá. Eles reivindicam há anos a implantação de uma escola e de um posto de saúde para atender as necessidades básicas dessa e de outras comunidades vizinhas.
As mais de 80 famílias são formadas por remanescentes de quilombolas, os primeiros moradores faziam parte do vizinho quilombo do Curiaú. A principal subsistência da comunidade é a agricultura familiar e a comercialização, ali mesmo, na beira da rodovia, dos produtos colhidos nas roças. Josefa Chagas, de 67 anos, se orgulha do que produz no seu quintal e diz que o que mais vende é a farinha e a banana.
“Planto mandioca, banana, graviola, abacate, tudo eu tenho aqui. Tem um açaizal lá em baixo. Tenho roça aqui, tenho roça para lá. Crio galinha, crio uns bufalozinhos, mas é meu sobrinho que cuida para mim”, comenta Dona Zefa, como é conhecida por todos na comunidade.
Dona Zefa é filha de um dos primeiros moradores da região e relembra a luta que sua família passou para permanecer no chão em que pisa desde que nasceu. Pedro Chagas, seu pai, foi ameaçado de ter suas terras tomadas, foi perseguido, preso e depois libertado. Zefa tinha oito anos na época e lembra tudo embaixo do cajueiro plantado no tempo em que seu pai era vivo.
“Meu pai morreu com 78 anos, até hoje o cajueiro ainda é vivo ali. Quando eles (Pedro Chagas e irmãos) começaram a plantar aqui, compraram uma parte do terreno que era do tio dele, onde hoje é a Ressaca do Mata Fome. Só que vieram e quiseram tomar o terreno dele. Quando foi um belo dia, apareceu um caminhão levando polícia, mais nove pessoas. Chegaram junto do irmão do meu pai que estava torrando farinha procurando Pedro Chagas. Meu pai também andava preparado, porque ele nunca andava desarmado pra roça. Quando chegou lá, eles (policiais) já foram atirando e meu pai também”, relembra.
O saldo desse embate é de dois mortos e quatro feridos, “entre os mortos estava o detetive Costa e Gregório Picanço, este acompanhava a própria polícia”. A história de Pedro Chagas é narrada no livro “Utopia da Terra” do autor Osvaldino Raiol, sobre a Comunidade da Casa Grande. Após as trocas de tiros, a polícia trouxe mais reforço e a família de Dona Zefa foi retirada de casa e levada para o mato para procurar Pedro Chagas que havia fugido para não ser morto.
“Furaram nosso forno, derramaram nossa farinha. Tocaram fogo nas casas. Depois viraram tudo aqui e não acharam meu pai. E nós no mato. Quando meu pai se entregou, mandaram a gente vir embora pra cá. Quando a gente vinha, vimos a polícia de peso em cima. Tudo com as armas em cima das mães e filhos. A minha avó era velhinha. Levaram machado, levaram terçado, para desarmar”, diz a matriarca da família Chagas.
Após a detenção de Pedro Chagas, que ficou preso por seis anos, seis meses e três dias, Zefa fala que nesse período a família teve que aguentar as dificuldades. Toda essa história foi recontada para Dona Zefa pelo próprio Pedro Chagas depois que saiu do cárcere. Hoje, Zefa tem orgulho em repassar a história de resistência do seu pai.
Depois do episódio, a comunidade começou a se mobilizar juntamente com os governos na época para a implantação de uma escola que atendesse as necessidades das crianças que existiam ali. A escola chegou a ser implantada, mas deixou de receber reparos e foi se acabando.
“Construíram a escola. Depois de um tempo, as crianças cresceram e foram estudar em Macapá, diminuindo a quantidade de alunos. Quando apareceu mais alunos, a escola já estava caindo. Metemos ofício no governo para ajeitarem a escola. Trouxeram os tijolos para construir, cavaram as valas. Certo dia, pensa que não, o caminhão chegou, pegou os tijolos, levaram tudinho e deixaram a gente sem escola”, fala Zefa insatisfeita com o descaso público.
A indignação de Dona Zefa fez com que a agricultura fosse até a Rádio Difusora de Macapá solicitar um transporte para as crianças que tinham que estudar na cidade. O pedido foi atendido, na época, um morador da comunidade assumiu essa função.
A comunidade cresceu, e outras comunidades surgiram próximas. Existem mais de 150 crianças que necessitam de transporte escolar para ter acesso a educação. São três Kombis e um ônibus que transporta as crianças até a comunidade vizinha, o Curiaú, a 10 km longe de sua casa.
O FUTURO ESTÁ NA EDUCAÇÃO
Para dar prosseguimento na educação básica, os jovens e adultos que moram na comunidade de Casa Grande precisam recorrer a Macapá. Dependendo do transporte público para se locomover até a cidade. Jeane Chagas, 35 anos, se formou em pedagogia e concluiu uma pós-graduação em Educação Inclusiva, em 2016 e 2017. Mesmo com a distância e com a falta de ônibus disponível para sua comunidade, Jeane concluiu os estudos sem sair da Casa Grande.
“Eu ia à noite, voltava pra casa. Às vezes perdia o ônibus, mas mesmo assim eu nunca saí da comunidade, nem para estudar. Eu sempre estudei em Macapá e morei aqui, eu ia e voltava”, fala Jeane.
Após a conclusão do curso superior, Jeane esperava que as coisas melhorassem, que conseguisse emprego na área da educação, trabalhando em uma escola da comunidade. Alimentava a esperança de construírem uma escola na sua comunidade, mas a realidade a obriga a disputar vagas de emprego na cidade.
“Onde vai trabalhar? Onde vai exercer a função? Quando tu mete o currículo, a primeira coisa que eles cobram é experiência com um ano de carteira. Para a gente que mora aqui, fica mais difícil ainda. A gente até evitava colocar no nosso currículo que moramos aqui, para ter a chance de conseguir um emprego dentro de Macapá. Mas é difícil!”, diz a pedagoga.
Sem oportunidade, Jeane diz, também, que olhar para seus certificados bate uma tristeza, pois precisou batalhar bastante para conseguir as formações. No cadastro reserva do último processo seletivo da educação do estado do Amapá, ela espera ser chamada. A cada nova nomeação, a esperança é alimentada em chegar a sua vez.
Com as necessidades, precisou voltar para o antigo emprego no motel em Macapá, de onde conseguiu dinheiro para pagar a faculdade. Jeane corre para garantir a educação, agora, para suas filhas e filhos. Todos eles tiveram que estudar longe da comunidade, com a ajuda da mãe que faz de tudo para oportunizar a educação. Este ano, a mais velha vai prestar vestibular.
“Eu me vejo nas minhas filhas, nas filhas das minhas primas. Eu digo para elas: vocês vão conseguir o que a gente não conseguiu. Tente numa pública, mas se você não conseguir numa pública, vou estar contigo para conseguir em um particular. Porque a gente vê o futuro na educação. Se nossas crianças pudessem estudar aqui, eu não mandaria meus filhos para lá”, fala Jeane.
A principal dificuldade que enfrentou para conseguir concluir a formação foi o transporte público, por que eles não cumprem os horários. Para ir trabalhar, paga 200 reais mensalmente para o primo deixar e buscá-la todos os dias.
“Isso só para o trabalho. Se eu for precisar ir em Macapá, comprar uma comida eu tenho que pagar ida e vinda em lotação. Por que não tem ônibus, se eu for depender de ônibus não faço nada. Quando a mamãe vai receber, 50 reais têm que deixar reservado. Ou 60 reais, por que é trinta para ir e trinta para voltar” desabafa Jeane.
O transporte público, por sua vez, é praticamente inexistente. Os moradores da Casa Grande são obrigados a desembolsar mais de 150 reais por semana para se locomoverem. A linha que atende o Bairro Ipê, e as comunidades Curiaú e Casa Grande, é operada pela empresa Sião Thur e existe apenas um ônibus nessa linha, mas muitos motoristas não cumprem a rota parando antes, na comunidade do Curiaú.
A reportagem entrou em contato com a Companhia de Transporte de Macapá -CTMac, responsável por fiscalizar as empresas de ônibus que prestam o serviço de transporte público urbano, em busca de informações sobre o não cumprimento da rota da linha que atende o Curiaú e a Casa Grande. Até o momento da publicação desta reportagem, a companhia não havia nos respondido.
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