Datas e nomes serão alterados neste relato, a fim de preservar a identidade das pessoas envolvidas.
Acontece regularmente nas periferias brasileiras. Mas, a natureza rotineira desse fato não o torna menos alarmante, apesar da banalização do mal da violência policial. Todos já ouviram falar ou leram em jornais, conheceram alguma família ou já passaram por isso. Quem narra para a Imprensa? A polícia. Quem narra para a AGCom? A família.
Margarida é moradora de uma periferia, em Macapá. Ela tem medo de ser identificada pela razão óbvia da retaliação policial - outro fato regular. Era tia de dois adolescentes, executados dentro da própria casa, pela força policial, em uma noite de horror.
Começou às 16h uma briga entre facções rivais. Margarida mora em um beco com sua família e na casa conjugada à sua, mora a irmã com marido, filhos e filha. Quando ouviu os primeiros tiros do lado de fora já se trancou com a filha/neta dentro de casa e trancou a casa da irmã, onde ficaram três adolescentes, dois sobrinhos e o filho. Começou a orar. Pouco tempo depois o barulho cessou.
“A minha vizinha do lado ligou umas 19h e falou ‘mana, acabou de chegar a polícia’ e eu disse ‘bem, se chegou a polícia graças a Deus’. A gente ficou até mais calmo, mas continuávamos com o portão fechado porque nunca se sabe quem corre, quem vai se esconder, quando a gente viu pisaram no portão ‘abre aqui, abre aqui’, e era a polícia”, relata.
Um integrante da facção assassinou um rival, em frente ao beco, onde ficam as casas da Margarida e da irmã. Aos policiais foi dito por alguém na rua que quem matou fugiu pelo beco. Assim, eles entraram no beco. Foram à porta da casa de Margarida e deram o comando para abrirem a porta. Ela abriu. Assustada e com medo, nervosa. Revistaram e viram a segunda porta, que levava à segunda casa, “tem alguém aí?”, gritaram os policiais
“A gente com medo disse ‘não tem ninguém’. Aí, eles arrombaram a casa. Quando eles começaram a pisar na porta, os meus sobrinhos e meu filho começaram a levantar a camisa pra mostrar que não tinham nada, e que não estavam armados”, ela lembra.
Os policiais arrastaram primeiro Sandro* (16) e o executaram com mais de dez tiros, na beira da escada da casa da tia. Pedro* (17) foi executado logo em seguida. Durante os assassinatos, o filho de Margarida, e primo dos garotos, foi espancado e teve a mão quebrada. Margarida presenciou todos esses acontecimentos. E fala mais, garantiu que a polícia implantou as armas do crime nas mãos dos garotos.
Após isso, agrediram-na. Quebraram seu celular – que estava gravando as agressões - e a trancaram em seu quarto. “Eles esfregavam a arma na minha cara, só que eu paralisei porque não conseguia nem falar. Eu vi, eu não estou mentindo, Deus sabe que eu não estou mentindo. Foi dentro da minha casa e eu pensava que nós estávamos seguros, se eu soubesse que naquele dia a segurança estava na rua nem eu estava na minha casa. Eu estava fazendo janta, ia fazer uma sopa, nesse dia eles morreram com fome”, fala Margarida aos prantos.
Vale ressaltar três pontos cruciais: 1) Os garotos não tinham envolvimento com nenhuma facção e não saíram de casa o dia inteiro, logo, não poderiam ser acusados de assassinato; 2) Os policiais não possuíam mandato para invadir a casa, nem qualquer indício que os meninos fossem os autores do crime na rua; 3) Mesmo que um crime tivesse sido cometido pelos irmãos, o procedimento seria encaminhá-los para julgamento e não para a morte imediata, com a cruel violência da execução em frente à família. Assim morrem jovens pobres. Sem culpa, sem julgamento, sem direitos humanos.
A POLÍCIA QUE MAIS MATA NO PAÍS
A polícia do estado do Amapá é a que mais mata no país com uma taxa de 12,8%, superando o estado do Rio de Janeiro com 7,1% segundo o Monitor da Violência desenvolvido pelo G1.
A Polícia Militar do Estado do Amapá foi criada pela Lei N°6.270 de 26 de novembro de 1975, em pleno regime militar com a necessidade de substituir Guardas Territoriais e estabelecer a ordem no então Território Federal do Amapá. O território não possuía grupos revolucionários e não havia resistência armada à ditadura que justificasse a criação de uma polícia militarizada.
Em 1973, foi feita uma operação que se valia do imaginário popular. Dava vida à lenda do homem que, ao cair da noite, atacava mulheres nas ruas de Macapá com seus poderes de visão noturna, grandes saltos e teletransporte: o Engasga-Engasga.
A Operação Engasga foi uma invenção de agentes militares para legitimar a criação da Polícia Militar no estado. A operação consistia em encenações feitas por militares de fora do estado para instaurar o medo na população e, assim, dois anos depois a Guarda Territorial se transformou em Polícia Militar. A cultura violenta que o modelo de segurança militarizado carrega na atualidade é consequência de anos de Ditadura e preconceitos sociais, raciais e de classe.
A Segurança Pública não pode matar porque acha ou pressupõe um culpado sem evidências e, em nenhuma hipótese, pode implantar provas para justificar sua crueldade. Inocentes estão morrendo pelas mãos de policiais, famílias estão sendo destruídas porque além das mortes ainda existem as dores e o sofrimento, a angústia e a tormenta da morte sem justificativa.
A ação policial sem medidas de violência não pode ser justificada pela violência das facções. Que violência deve ser combatida? Segurança para quem?
NUANCES
Existe uma lei dentro das facções: é proibido cometer crimes na comunidade. Margarida mora em um bairro considerado perigoso de Macapá, mas nunca, antes da noite em que seus sobrinhos foram executados, havia sofrido sequer assaltos.
“Eles [facção] proíbem roubar, tanto é que nunca fomos roubados. Quem está matando lá é a polícia e ela como agente, defensora do estado, ela tinha que averiguar e, mesmo que meus sobrinhos tivessem feito algo errado levava pra fazer exame, prendia. Seria julgado pelos atos sim, mas eles eram inocentes”, afirma a tia.
A facção presente no bairro de Margarida organiza ações de distribuição de cestas básicas desde 2020, eles não abordam as pessoas da comunidade. É um cenário complexo, enquanto facções criminosas conhecidas pela violência organizam ações de distribuição de cestas básicas para a periferia, a Polícia Militar, responsável pela Segurança Pública executa adolescentes dentro de sua própria casa.
“Hoje, pra nós, enxergar a polícia é o maior medo, nós nunca fomos roubados por bandido, a gente não está fazendo apologia ao crime, mas a gente nunca foi assaltado, nada, mas a polícia executou meus sobrinhos”, fala Margarida.
Nos jornais locais, a narrativa divulgada é da Polícia. Apresentaram erroneamente os garotos como membros mortos da facção. Os pais de Sandro* e Pedro* estão organizando um processo de denúncia contra a PM em meio a lágrimas, e Margarida e o marido limpam até hoje restos do sangue de seus sobrinhos na sala de casa.
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